Como ex-diretor da TV Globo analisa mudança nos direitos de transmissão

19/06/2020, 14:22
marcelo campos pinto MP 984

“Direito do mandante só poderá ser exercido, na sua plenitude, quando terminarem os contratos em vigor”, afirma Marcelo de Campos Pinto

A noite de quinta-feira (18) ficou marcada pelo retorno do futebol carioca durante a pandemia do novo coronavírus. Mas além da vitória rubro-negra no Maracanã vazio, o dia também foi agitado nos bastidores com muita repercussão. Publicada por Jair Bolsonaro, a MP nº 984/2020 interfere nos direitos de transmissão e pode mudar o futebol brasileiro. 

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Marcelo de Campos Pinto, que foi executivo da Globo Esporte durante anos, diz em artigo publicado em sua conta no Linkedin que “os contratos firmados pelo Sportv e pela Turner com os clubes constituem atos jurídicos perfeitos e, portanto, tem que ser respeitados. A Medida Provisória não tem o poder de anular esses contratos. Como se diz no jargão jurídico, ela somente produz efeitos ex nunc, o que significa que seus efeitos não retroagem.”

A Medida Provisória editada pelo presidente acaba com a obrigação de qualquer interessado em transmitir um jogo de futebol compre o direito de arena dos dois clubes participantes. Esse direito passa a ser prerrogativa exclusiva do clube mandante. Entretanto, a lei atual que foi sancionada há duas décadas ainda protege as emissoras que detém os direitos dos campeonatos que estão em contrato, como o Campeonato Brasileiro, a Libertadores e Copa do Brasil.

Atualmente, o Sportv tem contrato assinado com 11 dos 20 clubes que irão disputar a Série A do Brasileiro e a Turner com outros 8 clubes. Todos com vigência até 31 de dezembro de 2024. Na opinião do empresário, uma saída é a união dos clubes para acordos em conjunto, quando os atuais estiverem finalizados:

“Em resumo, na prática o direito do mandante só poderá ser exercido, na sua plenitude, quando terminarem os contratos em vigor das competições nacionais de futebol ou no caso de ambos os clubes não terem firmado nenhum desses contratos. Cumpre notar que nada impede que no futuro os clubes se organizem sob a forma de liga ou associação civil para venderem coletivamente seus respectivos direitos de arena como mandantes e estabeleçam regras para o rateio das quantias apuradas.”

Boa parte da torcida do Flamengo ficou animada com a chance do clube aumentar suas receitas, porém, ainda é necessário muitas discussões para a conversão da medida provisória em lei. O assunto é espinhoso e engloba questões financeiras e jurídicas sem favorecer interesses de grupos poderosos.

Leia o artigo assinado por Marcelo de Campos Pinto na íntegra:

No futebol agora quem manda é o mandante

O artigo 42 da Lei nº 9.615/1998 estabelecia, em seu caput, que pertencia “às entidades de prática desportiva o direito de arena, consistente na prerrogativa exclusiva de negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens, por qualquer meio ou processo, de espetáculo desportivo de que participem”.

Na prática este dispositivo obrigava qualquer interessado em transmitir um jogo de futebol a comprar o direito de arena dos dois clubes. A partir de hoje, com a edição da Medida Provisória nº 984/2020, tal direito passa a ser prerrogativa exclusiva do clube mandante, ou seja, aquele que conforme definido no regulamento da competição tem o direito de determinar onde o jogo será realizado e auferir as receitas provenientes da venda de ingressos, bares, restaurantes, etc.

Pela nova regra bastaria comprar os direitos de transmissão do mandante, mas antevejo que por motivos comerciais este princípio não seja compatível com todo e qualquer tipo de competição. Num campeonato de pontos corridos, como o Brasileiro, com jogos de ida e volta, não haverá qualquer problema. Mas e no caso da Copa do Brasil, competição em que os clubes que participam de uma temporada não são exatamente os mesmos na temporada seguinte ? Ficarão os interessados na compra dos direitos de transmissão obrigados a rastrear, todos os anos, os clubes que irão se classificar para a temporada seguinte para só então comprarem o direito de arena destes novos mandantes ? 

Acredito que isso não é viável. A previsibilidade é fator de incremento do valor comercial de uma competição esportiva. No caso de uma copa, uma negociação coletiva realizada pelo organizador da competição, quer seja uma entidade de administração desportiva ou uma liga, dá aos compradores a certeza de que poderão exercer seus direitos sem ficarem expostos ao risco de não conseguirem comprar, a cada ano, o direito de arena de um ou mais clubes mandantes. 

Uma outra questão relevante diz respeito ao momento em que, na prática, os clubes mandantes passarão a exercer essa prerrogativa absoluta de venda do direito de arena, qual seja, fazer a cessão dos direitos de transmissão sem o consenso do clube visitante.

Como sabemos, na vigência do dispositivo da Lei Pelé que estabelecia que o direito de arena pertencia a cada clube, o Sportv assinou contratos com 11 dos 20 clubes que irão disputar a Série A do Campeonato Brasileiro de Futebol de 2020 e a Turner com outros 8 clubes. 

Imaginemos que o Red Bull, amparado na medida provisória, ceda o direito exclusivo de transmissão por televisão por assinatura de todos os seus 19 jogos como mandante da Série A do Brasileiro deste ano para a Fox Sports. Poderia a Fox, que não tem contrato firmado com nenhum outro clube, transmitir esses jogos ? 

Entendo que não. O inciso XXXVI do art. 5º da Constituição Federal Brasileira estabelece que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Os contratos firmados pelo Sportv e pela Turner com os clubes constituem atos jurídicos perfeitos e, portanto, tem que ser respeitados. A Medida Provisória não tem o poder de anular esses contratos. Como se diz no jargão jurídico, ela somente produz efeitos ex nunc, o que significa que seus efeitos não retroagem.

Em assim sendo, somente a Turner poderá transmitir jogos dos clubes com os quais firmou contratos de cessão de direitos de transmissão; o mesmo racional se aplica ao Sportv. Ao Red Bull restariam duas opções: ceder o direito de arena para o Sportv ou para a Turner, ou não ceder para ninguém, hipótese em que seus jogos não seriam transmitidos em televisão por assinatura.

Como os contratos de cessão de direitos de transmissão da Série A do Brasileiro tem vigência até 31 de dezembro de 2024, somente após essa data o Red Bull poderá ceder o direito de arena de seus jogos como mandante nessa competição sem o consentimento do clube visitante.

Em resumo, na prática o direito do mandante só poderá ser exercido, na sua plenitude, quando terminarem os contratos em vigor das competições nacionais de futebol ou no caso de ambos os clubes não terem firmado nenhum desses contratos. 

Cumpre notar que nada impede que no futuro os clubes se organizem sob a forma de liga ou associação civil para venderem coletivamente seus respectivos direitos de arena como mandantes e estabeleçam regras para o rateio das quantias apuradas.

Do ponto de vista concorrencial a modificação é benvinda, pois abre o mercado de direitos esportivos brasileiros para novos entrantes. Caso os 8 clubes que venderam os direitos de arena para a Turner o tivessem feito na qualidade de mandantes, ela teria o direito de transmitir 152 jogos do Brasileiro, o que equivale a 40% de todos os jogos da competição, ao invés de apenas 56 conforme os contratos em vigor.

Agora cabe ao Congresso apreciar a constitucionalidade e a conversão da medida provisória em lei. Serão 120 dias de muita emoção, pois o tema não é pacífico e contraria interesses de grupos poderosos.

*Créditos da imagem destacada no post e nas redes sociais: Reprodução


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Rafael Sacharny
Autor

Jornalista carioca formado pela FACHA, pós-graduado em Jornalismo Esportivo e repórter fotográfico.