Virada à paulistana: 60 anos de uma épica vitória sobre o Santos de Pelé
Há exatos 60 anos, na tarde de 9 de março de 1958, o Flamengo pisou o gramado do Pacaembu para obter uma vitória sensacional em uma das viradas mais marcantes da história do clube. Pelo Torneio Rio-São Paulo, o adversário era o Santos, que contava com um certo Pelé vestindo sua camisa 10, o garoto-prodígio em meio a uma linha de ataque avassaladora. Mas o Flamengo de Fleitas Solich não era um time qualquer, e reagiu com ímpeto, dando um show de bola na segunda etapa, para sair de um revés por 2 a 0 e vencer de maneira épica por 3 a 2, quase na hora do apito final. Um triunfo para sempre.
O CONTEXTO DO JOGO
Com duas vitórias nos dois jogos anteriores, o Flamengo era o chamado “líder por pontos perdidos” do Rio-São Paulo, jogado no semestre que antecedeu a Copa do Mundo da Suécia. Na estreia, havia batido o São Paulo campeão paulista (que contava com o velho ídolo rubro-negro Zizinho) por 3 a 2 no Pacaembu, e em seguida a Portuguesa por 4 a 2 no Maracanã. O Santos, por sua vez, tinha um ponto ganho e um jogo a mais: superara o America no Maracanã por 5 a 3, antes de empatar com o Botafogo em 2 a 2 e vencer o Palmeiras pelo absurdo placar de 7 a 6. O embate, portanto, valia também a ponta da tabela.
No blog: Há 50 anos, goleada e festa no Maracanã para um ídolo que voltava
No time santista dirigido por Lula, além da mistura de raça e técnica do volante Zito, o destaque ficava com uma das melhores linhas ofensivas que o futebol brasileiro já viu, mesclando craques de épocas diferentes. Os pontas Dorval e Pepe e o habilidoso centroavante Pagão tinham 23 anos. Pelo meio, a enorme qualidade e experiência do veterano Jair Rosa Pinto (36 anos, outro ex-Fla) combinava-se com a juventude explosiva de um talento chamado Pelé, então com 17 anos – que no ano anterior atuara pela primeira vez no Maracanã justamente contra o Flamengo pelo torneio, sendo goleado por 4 a 0.
Mesmo que o time paulista ainda não fosse a referência mundial que passaria a ser dentro de pouco tempo, era um time de reconhecida qualidade. Pelos rubro-negros, era respeitado, mas não temido. Até porque o time de Fleitas Solich confiava em sua própria força. Jogaria completo, com o onze considerado titular para aquela temporada. Fernando era o goleiro, com Joubert e Jordan nas laterais, Pavão na zaga central auxiliado por Jadir, o capitão Dequinha como volante organizador de jogo, Moacir por dentro na meia-direita, Joel e Zagallo nas pontas, Dida na ponta de lança e Henrique como centroavante.
ROLA A BOLA NO PACAEMBU
O jogo começou no horário marcado de 17h de domingo. Empurrado pelo público presente, por sua própria força ofensiva e até pelo forte vento que soprava a favor de seu ataque, o Santos abriu o marcador aos 13 minutos. De fora da área, Jair solta um de seus tradicionais chutes venenosos, e Fernando espalma. Pelé pega a sobra e acerta o travessão, mas no rebote Pepe não desperdiça e coloca no fundo do barbante.
Jogando com a velocidade e a intensidade costumeiras do próprio Flamengo, o Peixe segue apertando e tem a chance do segundo gol aos 26 minutos. Apertado por Pepe, Joubert cede escanteio. O ponteiro santista levanta a bola na área e Pelé se antecipa a Pavão para marcar de cabeça o segundo gol. O Fla parece acuado, assustado e sem forças para reagir. Para piorar, alguns de seus principais jogadores fazem exibição preocupantemente apagada. Uma goleada paulista se anuncia.
Antes do intervalo, porém, Zagallo cruza uma bola da esquerda e Henrique, com sua habitual valentia, mete a cabeça para descontar. É um indício de que o Fla já se encontra no jogo. Dequinha começa a controlar Jair, enquanto Jadir aperta o cerco sobre o garoto Pelé. Solich também mexe no time, trocando Zagallo por Babá logo após a volta para o segundo tempo, e os rubro-negros passam a agredir mais o Santos. Assim, o gol de empate surge naturalmente: Dida aparece livre e toca para as redes aos sete minutos.
A GRANDE REAÇÃO
Solich não se dá por satisfeito e continua trocando: Henrique dá lugar a Luís Carlos no comando do ataque e mais tarde é a vez de Dida sair para a entrada de Duca, com Moacir passando à função de homem de ligação com o setor ofensivo. O resultado é que o Fla passa a imprensar o time paulista, dentro do Pacaembu. Perde uma, duas, três chances. Até corre um ou outro risco, mas agora é o técnico santista que é obrigado a mexer... na defesa, que vai levando um baile dos garotos rubro-negros.
Pelo volume de jogo que apresentou no segundo tempo, recuperando-se totalmente do futebol acuado da primeira etapa, seria injusto que o Fla não saísse vencedor. E essa justiça ainda tardou um bocado, mas não falhou. Duca e Moacir trocam passes na intermediária, e a bola chega até Babá, que recolhe e devolve a Duca. Do bico da área, o pernambucano dispara uma bomba, inapelável para o goleiro Veludo, que só pode assistir ao couro se aninhar nas redes.
O gol sai aos 44 minutos e 30 segundos da etapa final. Em cima da hora vem a virada épica, de um time que temia uma derrota dilatada no começo e terminou esmagando o adversário, com o garoto Pelé e todos os seus outros craques, em pleno Pacaembu. É uma vitória consagradora, aplaudida inclusive pela imprensa paulista. Nos vestiários, o capitão Dequinha, habitualmente comedido e de poucas palavras, não se contém: “Poucos triunfos em minha vida esportiva me emocionaram tanto. A nossa arrancada no segundo tempo foi impressionante e a resistência do Santos um capítulo para a história desse jogo. Foi preciso pernas e sangue, e o Flamengo os teve durante os noventa minutos”.
O Fla não conquistará aquele Rio-São Paulo. Brigará cabeça a cabeça com o Vasco até a última rodada, caindo num jogo infame contra o Corinthians no mesmo Pacaembu, agora tomado como um ambiente hostil, verdadeira praça de guerra, na qual os jogadores rubro-negros são agredidos até pela polícia local. Mas reservará para a história um bom punhado de vitórias memoráveis, como os 4 a 0 sobre o Botafogo de Garrincha, Didi e Nilton Santos e uma inesquecível surra de 6 a 2 sobre o Palmeiras, além da já citada vitória sobre o São Paulo e do próprio jogo de que trata esse texto.
Durante muito tempo – até dar lugar ao Urubu no fim dos anos 1960 – o marinheiro Popeye, célebre personagem de cartuns e desenhos animados criado por Elzie Sagar em 1929, ocupou o posto de mascote rubro-negro. A escolha recaiu pelo fato de o Flamengo ter, já naquele tempo, o hábito de crescer na adversidade. Quando parece derrotado, quase nocauteado, recobra suas energias para reagir com fibra e fúria, levando o adversário à lona. É o espírito que mais tarde geraria o popular bordão “deixou chegar...”. Como tantas outras, aquela vitória sobre aquele Santos é simbólica daquele Flamengo-Popeye.
Imagem destacada no post e redes sociais: Reprodução
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Emmanuel do Valle é jornalista e pesquisador sobre a história do futebol brasileiro e mundial, e entende que a do Flamengo é grandiosa demais para ficar esquecida na estante. Dono do blog Flamengo Alternativo, também colabora com o site Trivela, além de escrever toda sexta no Mundo Rubro Negro.
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