Na véspera do Flamengo começar o ano de 2022, que eu espero ser consagrador, por acaso fui à sede da Gávea – não, ainda não sou sócio (estou tentando comprar um título de proprietário mas tem sido difícil encontrar), fui levar meu filho a uma colônia de férias dentro do clube.
Eu não ia ao clube desde 2009, quando o percorri fazendo duas campanhas eleitorais (uma que acabou antes do fim e outra que me contratou); não cheguei a entrar (o que já considerei bom sinal), mas vi a Fla Concept ampliada, vi os bustos dos heróis de 1981, vi um pedaço do parque aquático (meu filho vibra TODAS as vezes que passa pelo clube e vê o parque aquático) e senti que há uma sede diferente. Diferente, não apenas de 1009, mas também da sede de 1977 a 1984, período que mais a frequentei.
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De mãos dadas com meu filho, que pela primeira vez entrava no Flamengo, cheguei a ter uma vertigem. Vocês sabem como é: vem “tudo de uma vez”. Me veio o cheiro meio de colônia pós-barba de meu pai, me veio a lembrança dos meu amigos aos 12 anos (como dizem em “Conta Comigo”, as mais verdadeiras amizades), me veio a lembrança dos salgados comidos na cantina, da piscina cheia de crianças – onde, até hoje não sou capaz de explicar como, eu usava as costas de meu pai como uma jangada. Bom, eu devia ser realmente pequeno quando criança… já que sou baixo hoje em dia!
Lembrei de quando, com meu pai, combinei de ir à Gávea TODOS os domingos, e levando mais quatro amigos, que ele ia catando de carro pelo caminho. Cabia toda a garotada no banco de trás do Passat TS. Às vezes minha mãe ia junto.
Quando a gente é criança, usar uma camisa de seu time, com um número, ao lado de amigos também com a mesma camisa, é uma experiência mágica de ser outra pessoa.
Meu pai, empolgado com nosso “time”, mandou fazer umas camisas brancas com listas vermelhas e pretas nas mangas (curtas) e no colarinho. No peito, um escudo do Flamengo em papelão ou algo mais duro, e bordado embaixo “FLA-URCA”. Atrás, o mesmo “FLA-URCA” e o número (o meu era sete, o de Reinaldo Bigode, meu ídolo ao lado de Zico e, antes, Doval e o saudoso eternamente Geraldo assoviador, esse sim meu primeiríssimo ídolo).
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Por um ano, ou um ano e meio, jogou o Fla-Urca. Nem todo domingo, claro – quando chovia, dificilmente saímos para a Gávea. Mas jogávamos na quadra de futsal, de cimento, ali perto da antiga quadra de tênis que eu nem sei se existe mais. Os outros meninos gostavam de formar time para ganhar da gente – era legal jogar contra um time uniformizado. A pelada “sem camisa x com camisa” às vezes é meio chata.
Quando a gente é criança, usar uma camisa de seu time, com um número, ao lado de amigos também com a mesma camisa, é uma experiência mágica de ser outra pessoa. E nessa hora ficamos pensando se não passamos a vida toda tentando ser outra pessoa, que admiramos, que amamos, que veneramos – e só quando a gente “sossega” entende que bom é ser a gente. Como dizia o gênio Paulo Leminski, tão distante do Brasil de hoje, “isso da gente querer ser/exatamente o que a gente é/ainda vai nos levar além”.
Mas quem disse que nós ali não éramos exatamente jogadores do Flamengo, quem disse que ali não éramos Geraldo Assoviador, Júnior, Reinaldo Bigode, Rondinelli, Manguito, Nunes, quem disse que não éramos Arílson, Doval e Liminha (outro de meias arriadas)? Quem disse que não éramos Zico. Perdão. Esse, nós não éramos. Ninguém mais é Zico além de Zico. Voltemos à prosa.
Pois vivemos hoje a véspera do começo de um ano que promete ser incrível para o Flamengo, um ano de transformações, de mudanças, de grandes rupturas, um ano em que, esperamos, o pesadelo da COVID-19 começa a se esvanecer. Acho justo – a doença que tem no nome um ano inesquecível para o Flamengo (19) terminar em outro ano inesquecível para o Flamengo.
Meu filho já sabe que amanhã tem Flamengo. Já sabe agora como é a Fla Concept, como é o Parque Aquático. Viu e reconheceu o Zico na estátua que fica em frente à loja, correu e abraçou, depois percorremos juntos cada busto. “Aquele é o Mozer, esse o goleiro Raul, aquele o Leandro, esse o maravilhoso Adílio, aquele o inigualável Andrade” – e meu filho, com seis anos de vida e os olhos arregalados para mais de 50 anos de outra vida, a do pai. Navegando no rio bravio do meu tempo de mundo, meu filho sorria na proa.
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Num tempo em que “transmitir” é uma expressão que é tão usada para vírus e doença, eu percebi que eu transmitia amor. E em nome do amor que eu recorro a um vascaíno genial (são muitos, como sabemos) para fazer uma paráfrase:
“O Flamengo acalma o sentido dos erros que faço
Trago não traço,
Faço não caço
O amor da morena maldita
Domingo no espaço
Fico manso, amanso a dor
Flamengo é um dia de paz
Solto o ódio, mato o amor
Flamengo, eu já não penso mais”
Sim, no Flamengo não pensamos mais, nós sentimos. É comunhão dos espíritos, é a festa dos sentidos, é a felicidade de reconhecer um irmão no estranho, é o som dos copos brindando um dia feliz nesta vida tão difícil dos últimos tempos.
Eu podia dizer que isso é Flamengo, mas não. Flamengo é um universo no qual esses sentimentos são como estrelas que não sabemos estarem vivas – mas isso não faz diferença, pois o que importa é a luz.
Feliz Ano Novo para todos nós, Flamengos, vamos “ser campeão”.
*Gustavo de Almeida é jornalista, assessor de imprensa e roteirista do longa Intervenção. Siga no Instagram.