Por Gerri Rodrian
O sujeito está cabisbaixo,
ofegante até, pela respiração que não navega livremente pela glote
(por conta de seu pescoço ridiculamente quedado e rijo,
a carregar uma cabeça que pesa naquele momento uns quatrocentos quilos).
Está um tanto constrangido,
volta ao consultório de seu analista.
Alguns anos se passaram.
Lembra-se bem de quando se deu alta,
de quando, sentindo-se o vencedor,
esmagava todas as suas mazelas e olhava longe para o futuro,
nele enxergando as festas que teria,
a liberdade que conquistaria.
Do mesmo autor: O fogo que ferve a sopa
E assim viveu por este tempo (que agora lhe pareceu mesmo breve,
ligeiro como a vida de uma mosca).
Mas eis que chegou a roda-vida. Eis que o tempo se transformou.
Veio a chuva, veio a noite.
E assim o sujeito volta àquele consultório,
de onde saiu exultante, fronte erguida e peito inflado.
Senta-se naquele mesmo sofá,
diante de um analista sem sorrisos,
a lhe perscrutar, e sem cumprimentos diz:
— Tenho a sensação de que a vida é mesmo uma grande Libertadores que se esvai num escorregão.
O analista espanta-se, abre os olhos e um tanto a boca e se dá conta de que o sujeito que voltava voltava dilacerado.
— Eu escorreguei. Injusto que tudo isso se acabe em escorregões — e nem ao certo sei se escorreguei por estar descuidado.
— Acha injusto? Isso é o que mais lhe entristece? — pergunta seriamente o analista.
— Estar tão perto da vitória e fracassar numa escorregadela é pior sensação que perder logo, nas oitavas! Desde aquela cobrança do Príncipe Jajá não me sentia tão triste.
— Não superou ainda, quarenta anos depois?
— A verdade é que ainda me dói. Sabe, “Cabañas” era previsível! “Quiñónez” era previsível!
— A tragédia previsível nem soa como tragédia, mas como confirmação. Toda confirmação é em verdade um alívio, nos dá a confiança que a vida é real e segura.
O sujeito tem agora os olhos rubros. Alguma tristeza passada lhe veio.
— E prefere então perder logo nas oitavas e nem disputar os títulos da vida? Ser coadjuvante nas vitórias que os outros vão saborear?
— Se eu escorregar novamente, tão perto da vitória, é o que prefiro — responde com a voz trêmula o sujeito.
— Mas a vida também não é diferente às vezes? — questiona o analista com certa rispidez.
Fez-se certo silêncio. O sujeito olha para os lados, olha mesmo para o topo da memória e responde:
— A vida às vezes parece uma virada aos quarenta e seis minutos, eu sei, e estamos sempre a esperar pelas viradas, pelo surpreendente, que a sorte nos faça sorrir.
— E há justiça assim? Na sorte do escorregão alheio? Assim lhe satisfaz a justiça do mundo?
— Eu não sei. Sinceramente.
— O que mais a vida lhe parece? — pergunta o analista, sem se mover, prevendo a resposta.
O analista coça a ponta do queixo, como a expressar preocupação. Aquele paciente estava fragilizado além do que já fora antes. Há dez anos era apenas um sujeito tristonho, com alguma pequena esperança na vida e um punhado de nostalgia. Hoje, porém, é um complexo caleidoscópio de muitas camadas. Alguém que é num mesmo instante soberbo e relutante. É alguém que sabe de seu potencial, mas que sabe bem dos escorregões que já tomou e que por isso mesmo se culpa por seus fracassos de um modo violento, quase a querer nunca mais disputar um novo campeonato.
— Seja como for, haverá novos campeonatos — começa o analista, com a voz firme. — A roda não para quando nos sentimos cansados. Ela segue. Enrolados a ela vamos, enrolados, presos, seja como estivermos, e rodamos juntos nos seus altos e baixos. E todos nos julgam. A maioria, tomada de inveja, queria estar em seu lugar, para escorregar ou para virar nos minutos finais.
— Mas eles riram de mim quando escorreguei.
— Há aquela música antiga que diz: “A jura secreta que não fiz, a briga de amor que eu não causei”… Se lembra?
— Sim.
— Pois o que talvez lhe ajude seja refletir sobre o riso alheio: enquanto vivem suas vidas medíocres, invejam secretamente as emoções que você (e só você) vive. E a cada riso, acredite, estão a rir apenas da própria inércia. Para eles, a vida se resume a rir de quem escorrega ou blasfemar de quem vence nos minutos finais. E apenas isso. E você, afinal, o que quer pra si?
O sujeito pensa e não responde, de imediato. Mas se sente um tanto aliviado. A cabeça parece não lhe pesar tanto. Respira melhor. Aquela pergunta ecoa. E entre tantas respostas, apenas uma lhe surgia, quase a lhe parecer que era a única possível: — Eu só quero viver.
O analista sorri sem querer. Está satisfeito. Nem precisa dizer que “quem vive, experimenta”. O sujeito entendera: nenhuma dor deve ser maior que a paz de estar a viver plenamente, conforme sua natureza. E agora é a ansiedade que lhe toma num repente: que começasse logo sua nova liberdade! Escorregando ou vencendo, o que deveria importar? Viver é melhor que sonhar. E enquanto ele vive outros muitos apenas sonham, dormem. Eternamente dormem.
— “Só uma palavra me devora, aquela que meu coração não diz”… — É assim que eles cantam. Lembre-se disse, sempre.
O sujeito se levanta. Sorri. Agradece com um gesto e vai andando porta afora, agora constrangido por ter sofrido por tão pouco. Logo ele, o mais invejado, o mais vencedor, e, em verdade, o único que não deveria nunca se permitir tanta humildade.