Qualquer torcedor que não esteve procurando água em Marte nesse começo de ano certamente já falou sobre a musa do verão de 2022, a chamada SAF – Sociedade Anônima do Futebol, criada por lei em agosto de 2021 e que ganhou notoriedade com as prováveis vendas de Cruzeiro, Botafogo e Vasco.
Em meio a tantos exageros típicos da paixão que é marca registrada do futebol, há quem tente trazer certa racionalidade ao tema. É o que pretendo fazer, na medida das minhas limitações enviesadas (não sou um entusiasta do modelo).
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Rodrigo Capelo, principal voz na imprensa especializada, escreveu um artigo em que, pretendendo responder se as vendas já anunciadas foram caras ou baratas, me poupou de escrever vários parágrafos introdutórios: todos os três times foram vendidos pelo valor da sua dívida, sem 1 real em favor dos clubes até então detentores das marcas! Espero que essa dura constatação sirva para mostrar que o cenário está longe de ser cor de rosa.
Vou pular outra parte importante dessas primeiras transações, o completo desleixo pelas formalidades, algo tão genuinamente brasileiro. Afinal, ao menos nos casos de Cruzeiro e Botafogo, em estágio mais avançado, os compradores já assumiram a gestão, deram ordens, demitiram, contrataram e se sentaram nas cadeiras diretivas sem que tivessem formalizado o negócio, aliás parece que podem até desistir se as due diligences forem espinhosas em excesso. Só espero que depois não se queixem se o Judiciário brasileiro, essa entidade mais enigmática que a esfinge de Tebas, resolver decretar a confusão patrimonial entre a SAF e o clube.
Meu objetivo é outro: fornecer uma outra abordagem para a pergunta irrespondível, ou seja, quanto vale um time de futebol?
Como até aqui a partir dos negócios realizados só foi possível extrair uma única métrica objetiva – um clube brasileiro vale o que ele deve – resta especular quanto valeria um clube solvente. Ou, ainda mais, se uma transição para a SAF é atrativa para um clube solvente nesse momento. E já dou minha resposta de início: não, não é!
Em transações empresariais se popularizou a expressão distressed deals para classificar negócios onde ativos são comercializados por preços abaixo do seu valor. É como se o vendedor estivesse de tal forma estrangulado que acaba sendo coagido pelas condições econômicas a aceitar uma perda relevante para o seu bem.
Não há dúvidas de que os três clubes citados são, conceitualmente, “ativos estressados”. Nas condições econômicas atuais não há cenário de sobrevivência para quem deve no curto prazo muito mais do que consegue arrecadar. Somente a injeção de capital externo é capaz de resgatar a normalidade operacional.
Em busca de uma resposta mais objetiva para o valuation dos clubes vendidos, Rodrigo Capelo ouviu a opinião de Cesar Grafietti, o maior especialista em finanças dos times de futebol e que já havia detalhado as métricas adotadas para valorar transações semelhantes em outros países.
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Como, via de regra, a receita auferida pelos clubes é uma variável relevante no valuation, é possível concluir que um clube vale um múltiplo de seu faturamento. E, comparativamente a tantas transações já realizadas nos últimos anos, o fator adotado nos casos brasileiros é bem superior à média dos negócios. Logo, o preço da transação é justo, ou, ainda melhor, é até acima do usualmente praticado.
Eu não concordo, contudo. Penso que uma métrica consolidada para mercados maduros não deve ser reproduzida de forma quase automática para um mercado incipiente e com peculiaridades que precisam serem levadas em conta no valuation.
Qualquer negócio vale, em última análise, o quanto ele é capaz de agregar valor a quem o detém. Evidentemente, a geração de caixa é uma variável fundamental, é dela que vem grande parte do valor agregado. Portanto, concordo que o faturamento pretérito sempre deve ser um elemento decisivo. Mas nos casos dos times de futebol brasileiro é preciso ponderar além.
Para começo de conversa, esses clubes sofreram forte abalo em suas receitas recentes, como consequência de sua queda para a 2ª divisão e campanhas medíocres (paradoxalmente é uma boa notícia para os compradores, afinal as possibilidades de melhorias são imensas). E, além disso, o que vai acontecer no futuro próximo está sendo claramente subestimado na parametrização dos negócios realizados.
É sabido que há dois ou três grandes movimentos prestes a acontecer no futebol brasileiro: (a) a renegociação do contrato de transmissão do campeonato brasileiro, que vence em 2024 e vai render luvas para os clubes; (b) a renegociação dos contratos de transmissão da Conmebol, que deve elevar os prêmios de participação dos clubes na Libertadores e Sul-Americana; e (c) a possível criação de uma liga dos 20 ou 40 maiores clubes, o que pode resultar em um pagamento substancial pelo futuro gestor da entidade a título de adiantamento de lucros futuros.
Ou seja, se o mundo não acabar ou uma nova pandemia nos congelar, vai jorrar dinheiro no futebol brasileiro nos dois próximos anos como há tempos não se vê. E esse dinheiro, óbvio, irá para as mãos dos controladores dos times, sejam eles os vetustos dirigentes amadores, sejam eles os compradores entrantes.
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Quando eu era criança a região da Barra da Tijuca era um completo despovoado. Se alguém em 1978 tivesse dito ao meu pai que nos próximos 3 anos ali seriam construídos imensos condomínios e o maior shopping center da cidade ele provavelmente teria comprado um terreno a preço de banana naquele matagal e hoje poderíamos todos viver de renda. Algo parecido está acontecendo no nosso futebol: ainda que mais à frente as receitas tendam a estagnar ou até cair, no curto prazo haverá um derrame de dinheiro.
Futebol, cá entre nós, é um péssimo negócio. Como está citado em Soccernomics, o grosso do dinheiro vai para emissoras de TV, atletas, seus agentes, fabricantes de camisas. Os times ficam com uma fração pequena. Investe pesado em time de futebol quem nele vê sinergia com outros negócios que já possui, quem precisa melhorar sua imagem (sportswashing), quem tem tanto dinheiro que não se importa em diversificar com algo que dá prazer e status. Por isso, a atração de investidores ocorre em um campo bem estreito.
Mas para quem está disposto a colocar dinheiro nesse mercado, o Brasil de 2022 é uma espécie de caça ao tesouro. O que não falta é clube quebrado sedento por uma ou duas dezenas de milhões de euros (que é o que está saindo do bolso dos investidores agora). Em troca, é possível assumir o controle de uma instituição que em breve vai faturar bem mais. As dívidas podem ser pagas com o fluxo de caixa turbinado, o investimento prometido pode ser escalonado em muitos anos, o valor do negócio tende a crescer e pode ser repassado em alguns anos, com grande lucro.
Há vantagens em mover o time de um clube para uma SAF? Em tese, há uma imensa: tirar o poder decisório das mãos de amadores. Naturalmente, nada impede que esse salto na governança ocorra na associação civil. Mas não é algo trivial onde gente preocupada com a bocha e a peteca dá as cartas. Além disso, há exemplos de gestão profissional com fracassos retumbantes e há exemplos de boas gestões amadoras.
Em resumo, no estágio atual do futebol brasileiro, não tenho dúvidas em afirmar: SAF só é bom para quem está com a corda no pescoço. Quem é capaz de aguentar o tranco nas próximas 2 temporadas que fique quietinho no seu canto. Em breve seu time vai valer muito mais e aí se repensa o futuro.
Notem que até aqui não falei em Flamengo. E nem haveria motivos de falar, afinal não existe a menor possibilidade do clube, saudável, entrar na arena dos distressed deals que são a primeira onda das SAFs brasileiras. No Flamengo minha preocupação é outra: morro de medo de ver nas mãos dos nossos dirigentes amadores essa dinheirama que em breve vai brotar, sei lá o que eles são capazes de comprar (eu investiria pesadamente em infraestrutura e tecnologia, contudo essa decisão não cabe a mim). Mas esse é outro tema, falo dele em outra ocasião.
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Por ora, minha conclusão é uma só: nesse momento SAF é ótimo para quem compra e péssimo para quem vende. O mercado financeiro, como se diz, é uma eterna disputa entre “comprados” e “vendidos”, cada um empurrando os preços na direção que lhe interessa. Realmente tenho dificuldade de acreditar que clubes que não foram capazes de se manterem saudáveis em um segmento imune à falência e tributação de lucros possam ser bem-sucedidos em seus tratos com investidores tarimbados. Vou torcer para estar errado.
Notem que não fiz o que me propus, tentar dizer quanto vale um time de futebol. E não o farei, por ora. Porque nem eu, nem os estudiosos do assunto, nem os dirigentes amadores, nem os investidores sabemos, absolutamente ninguém sabe com precisão. Só daqui a alguns anos teremos massa crítica suficiente para cravar algo mais definitivo. Uma coisa, porém, dá para dizer: como em qualquer negócio, a projeção das receitas futuras precisa ser ponderada. É com base nela que se deve calcular o múltiplo a ser pago.
Walter Monteiro é advogado, sócio do Flamengo e concorreu à presidência do clube em 2021. Escreve no MRN desde seu início, em 2015. Siga-o no Twitter: @womonteiro.