No meu artigo anterior destaquei que Landim se aproveita da desatenção de alguns para dar a falsa impressão de que o valor do título de sócio proprietário teria um substancial aumento caso ele vendesse o futebol para uma SAF (onde, segundo ele, o Flamengo seria o acionista majoritário). Deixei claro que isso não tem a menor chance de ocorrer, por razões práticas e legais.
Há, no entanto, quem acredite que em uma SAF onde o Flamengo seja o acionista controlador, haveria uma melhora automática da governança, uma vez que a era do amadorismo seria encerrada.
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Eu, um defensor radical do profissionalismo, às vezes sinto necessidade de esclarecer exatamente o que é “amadorismo”, já que essa expressão adquiriu o significado pejorativo de algo feito sem o devido cuidado.
Mas amadorismo, na essência, é aquilo que é feito por amor, de forma voluntária, portanto quase sempre de forma compartilhada com outras atividades. E, ao contrário, profissionalismo é aquilo realizado em troca de uma contrapartida, em geral com dedicação exclusiva.
Sim, em uma SAF não há espaço para dirigentes amadores. Todos que ali estarão, principalmente na alta cúpula, terão uma remuneração compatível e com isso espera-se uma dedicação condizente com a missão.
Evidentemente, a gestão de um clube de futebol, ainda que sob o regime de associação, igualmente poderia ser profissionalizada, como defendo. Não é a natureza jurídica que determina se uma associação será gerida por amadores ou por profissionais, é a escolha política dos associados que decreta a forma de gestão.
SAF representa retrocesso na governança
Porém, mesmo profissionalizada, uma SAF representaria um brutal retrocesso na governança do Flamengo, porque concentraria todos os poderes nas mãos de uma única pessoa: o presidente do clube, que seria o representante do acionista controlador da SAF.
Essa pessoa, sozinha, pode fazer o que bem entender e a possibilidade de sua remoção é bastante restrita, afinal, só sofrendo impeachment (em termos práticos, com o voto de mais de 800 Conselheiros em votação secreta).
Desconfio que esse aspecto não sofre a reflexão necessária sobre os riscos envolvidos (suspeito que até mesmo o Landim ainda não avaliou adequadamente o cenário adverso) e convido os leitores a pensarmos juntos o problema que podemos criar, provavelmente até irreversível.
À primeira vista, como o Flamengo seria o controlador dessa SAF a ser criada, portanto capaz de tomar sozinho todas as decisões relevantes, fica a impressão de que nada muda. Outro trecho do áudio vazado por este MRN, com a fala do Landim reforça essa ideia:
“Eu acho que a gente pode fazer uma venda primária, só dilui a gente e entra mais capital, a gente poderia levantar todo o recurso necessário para a construção de um estádio sem nós perdermos valor nenhum. De mando, de governança dentro da SAF futebol, zero. Ele `[o investidor] não vai poder fazer a bobagem, sabe por quê? Porque quem vai estar apontando quem vai ser o gestor da SAF vamos ser nós, não vai ser o presidente [do investidor]. Vamos ser nós, a gente pode tirar ele a qualquer momento”
Autonomia x regulação: quem fala pelo Flamengo na futura SAF?
O problema, como sempre, está nos detalhes, nas entrelinhas, naquilo que só o olhar mais atento revela: afinal, quando o Landim fala de “nós” ou “a gente”, a quem exatamente ele se refere? Em última análise, quem fala pelo Flamengo na futura SAF?
No artigo anterior vimos algumas diferenças entre uma associação e uma sociedade, mas agora vou chamar a atenção para outro aspecto: a autonomia versus a regulação de cada uma.
Uma associação é regida apenas por nove artigos do Código Civil. Um deles, inclusive, prevê que o modo de constituição e funcionamento dos órgãos deliberativos é uma atribuição do estatuto social – ou seja, a associação é livre para escolher sua governança.
Clubes de futebol possuem uma camada adicional de regulação – antes a Lei Pelé, atualmente a Lei Geral do Esporte, que cria algumas restrições, como a obrigação de ter Conselho Fiscal, limitação de mandatos e outras, mas, em geral, a autonomia para criar suas deliberações internas é bem grande, ao passo que a regulação é enxuta.
Uma sociedade é diferente. Só no Código Civil há 214 artigos tratando de sociedades, seus tipos e aspectos ligados a elas. Sociedades Anônimas têm uma lei especial, com 300 artigos. E as Sociedades Anônimas do Futebol – SAF, possuem sua lei específica, com mais 36 artigos.
Assim, uma SAF obedece primeiro a sua lei específica, naquilo que esta não criar nenhuma regra especial obedece depois à Lei das S/A; e, por último, para o que a Lei das S/A não prever, valem os 200 e tantos artigos do Código Civil, quando aplicáveis.
Pouca autonomia, bastante regulação, enfim.
Sobre a governança
A parte que importa para esse artigo tem a ver com a governança, isto é, como são os órgãos internos das entidades que tomam as decisões e como eles podem ou devem ser criados.
Para dar um refresco ao leitor, prefiro demonstrar em um diagrama. No Flamengo, se valendo da liberdade que o Código Civil confere, a governança foi estruturada assim:
Já em uma sociedade anônima é bem diferente. É a lei que determina (a) quais são os órgãos de deliberação, com sua respectiva competência e (b) como os participantes desses órgãos são escolhidos. O diagrama da governança de uma S/A é o seguinte:
O que o Landim está propondo é que o Flamengo seja o acionista majoritário e controlador da SAF que irá constituir. Imagino que seja apenas um único investidor, provavelmente um fundo de investimentos.
Logo, a assembleia de acionistas, que vai escolher o Conselho Fiscal e o Conselho de Administração (e este, por sua vez, vai escolher o Presidente e os Diretores da SAF), nesse caso seria formada por apenas dois votantes: o representante do Flamengo e o representante do investidor.
Você não leu errado: essas DUAS pessoas vão nomear o Conselho de Administração e esse Conselho de Administração vai empossar o Presidente da SAF e os demais diretores.
Quero insistir. Em uma SAF, o Flamengo “fala” apenas por intermédio de seu representante legal – uma pessoa que, sozinha, está legalmente autorizada a tomar todas as decisões, sem precisar consultar ninguém. É essa pessoa que representa toda a instituição, em todas às vezes que o acionista for convocado a participar.
Uma governança absolutamente solitária.
Tem quem suspeite, com algum grau de razão, que Landim idealizou esse modelo como uma forma de se perpetuar à frente do Flamengo. Afinal, na futura SAF, ele não precisaria mais disputar a eleição no Flamengo.
Bastaria convencer o representante do Flamengo na Assembleia de Acionistas a votar nele para comandar a empresa, podendo ser reeleito quantas vezes quiser. Aliás, na primeira votação nem precisaria convencer ninguém, já que o direito de voto é dele e ele votaria em si mesmo, como acaba de acontecer no Fortaleza.
Preciso discordar dessa premissa, embora não a descarte, mas ela me parece que embute uma certa dose de ingenuidade. Afinal, a Assembleia Geral de Acionistas não acontece simultaneamente à Assembleia Geral dos Associados do Flamengo, que elege o presidente do clube e futuro representante do acionista controlador.
É esse descasamento temporal que traz enorme incerteza e elevados riscos.
Digamos, por exemplo, que Landim consiga vender o Flamengo lá por abril do ano que vem. Ato contínuo, os acionistas da futura SAF vão eleger o seu presidente. Ou melhor, o presidente do Flamengo, que terá a maioria dos votos (para cada ação, 1 voto, como o Flamengo terá 70% das ações, terá 70% dos votos), aponta o novo presidente da SAF, seja o próprio Landim, seja quem ele quiser escolher.
Porém, em dezembro, quase 7 mil associados do Flamengo vão escolher o novo presidente do clube, que certamente não será o Landim, já que não pode mais se reeleger. Quem será? Tirando o misterioso Roberto Dodien, que não é elegível pelas regras estatutárias, pode ser qualquer sócio proprietário com mais de 35 anos de idade e mais de cinco anos de associação – tem uns 5 mil nessa condição.
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Quero lembrar que a Lei das S/A permite as destituições do presidente e diretores da companhia “a qualquer tempo” (a citação é literal) pelo Conselho de Administração. Prevê que os membros desse Conselho também são destituíveis “a qualquer tempo” pela Assembleia de Acionistas e que a Assembleia de Acionistas pode ser convocada por acionistas que detenham determinada fatia do capital social (e o Flamengo deterá a maioria absoluta).
Logo, se o vencedor das eleições no clube for um desafeto do Landim, a troca de comando na SAF será favas contadas.
Na governança do Flamengo de hoje, com todos os seus percalços, há certo fracionamento de poderes e algum sistema de freios e contrapesos. O Conselho de Administração aprova o orçamento; o Conselho Deliberativo opina sobre sua execução. Contratos de patrocínio precisam ser aprovados. O Conselho Fiscal possui membros indicados pela oposição. Diversas comissões temáticas nos Conselhos sugerem melhorias ou opinam sobre temas relevantes.
Em maior ou menor grau, há pelo menos uns 500 associados se envolvendo com as questões do clube. É por conta dessa governança que o presidente do clube não consegue ser um déspota, um autocrata, ainda que possa desejar algo semelhante e às vezes até ensaie algo parecido. O Flamengo ainda conserva certa pluralidade.
Se virar SAF, tudo isso acabará. A participação dos associados se limitará exclusivamente a escolher quem representará o clube na Assembleia de Acionistas. Essa pessoa terá uma concentração de poder inédita na história rubro-negra. E, o que é mais grave: a transformação em SAF é, em tese, irreversível, já que, por disposição legal, os direitos de filiação às entidades de administração do esporte são transferidos para a companhia.
Posso não concordar, mas consigo compreender a lógica de instituições centenárias, como Vasco e Botafogo, renunciarem ao poder decisório e o entregarem para seus novos controladores. John Textor e a 777 Partners têm todo o direito de fazerem o que bem entenderem com seus times, afinal, pagaram por isso.
Mas jamais vou aceitar que os cerca de 7 mil associados do Flamengo seriam capazes de, a cada três anos, ungirem apenas um deles com carta branca para representar a todos na empresa que irá suceder nosso clube, ainda mais que essa pessoa se tornou o “dono” da SAF sem ter colocado um real do bolso em favor da instituição.
Se você é tão fã do Landim a ponto de apoiar incondicionalmente essa venda, quero fazer o apelo final: lembre-se que em menos de um ano o abençoado pode ser uma pessoa que você ODEIA. Deixo sua imaginação trabalhar pensando nesse cenário….
No próximo artigo, vou falar sobre como a lógica de custos e remuneração de uma SAF será bastante alterada em relação ao que temos hoje e como isso será capaz de atrair algo menos frutífero no modelo associativo: a cobiça.