“Ricardiola” e o Flamengo conquistam os corações e mentes enquanto farejam a glória do título, diz jornalista inglês
Por Jack Lang (Twitter: @Jacklang), do Who Scored
Matéria original (em inglês): 'Ricardiola' conquers hearts & minds as Flamengo sniff title glory
Tradução e adaptação: Rodrigo Rötzsch (Twitter: @rodrigorotzsch)
Eles chegaram aos borbotões, alguns vindos de bairros vizinhos, contentes por terem um jogo na porta de casa, outros vindos de mais longe.
Era 11 da manhã num domingo - não era realmente hora para futebol - mas o sol já estava castigando: na hora que o jogo começou, boa parte dos torcedores já haviam tirado as camisas. Pelos 90 minutos seguintes, o time da casa foi incentivado por quase 30 mil almas.
Isso pode não parecer muito, considerando que o anfitrião era o Flamengo, o time de maior torcida no Brasil. Mas o contexto é muito importante. Primeiramente, trata-se do Brasil, onde, apesar de toda a paixão e toda a história, a média de público na Série A nesta temporada é de apenas 15 mil. Em segundo lugar, o jogo, contra o Figueirense, não aconteceu no Rio, mas a 425 km dali, em São Paulo. *Trinta mil foi um público bastante impressionante.
O Flamengo se acostumou a esse tipo de coisa nos últimos meses. O Maracanã esteve indisponível o ano todo por causa das Olimpíadas e Paralimpíadas, significando que os jogos “em casa” do Rubro-Negro se tornaram uma espécie de tour mágico misterioso. Houve jogos em alguns estádios pequenos do Rio, mais numerosas viagens para arrecadar dinheiro em cidades distantes como Brasília e Natal. Se os jogadores estiverem acumulando milhas aéreas, suas férias estão provavelmente garantidas pela próxima década.
Está claro que os torcedores fizeram do limão uma limonada: dois dos três maiores públicos do Flamengo em 2016 aconteceram no Pacaembu - “Flacaembu”, como alguns o apelidaram - e você não deveria apostar contra a barreira de 30 mil ser quebrada se os planos para que o jogo contra o Santa Cruz aconteça lá no mês que vem se concretizem. Claramente, a paixão é profunda.
Os públicos também são uma resposta direta ao que está acontecendo no campo - e na classificação do Brasileirão. Porque o Flamengo, contrariando todas as expectativas da temporada -- e, caramba, a maioria das expectativas do meio da temporada até alguns meses atrás - está jogando o melhor futebol no país e mostrando ter sérias chances de ser campeão.
O Figueirense foi despachado por 2x0, um resultado que tornou a colocar o Flamengo a um ponto do líder Palmeiras, que havia ganhado do Corinthians no dia anterior. Os dois estavam a quilômetros de distância no início da campanha, com o Verdão demolindo tudo no seu caminho e o Flamengo parecendo desconjuntado. Paulatinamente os Gigantes do Rio emergiram do meio da tabela para se estabelecer como os principais adversários do Palmeiras pelo título, descontando um ponto aqui, dois ali.
O Palmeiras continua a ditar o ritmo, mas o Fla de alguma maneira os está igualando a cada passo do caminho, esperando para dar o bote. Quase conseguiu na semana passada, quando o primeiro recebeu o segundo no Allianz Parque, mas teve que se contentar com um ponto após jogar por 50 minutos com dez homens. Porém, esse resultado pouco fez para diminuir o senso de inevitabilidade da conquista. Há, para adotar a expressão do momento no Brasil, um “cheirinho de hepta” no ar. O sexto campeonato nacional do Flamengo - eles dizem que é o sétimo , é uma longa história - está tão
próximo que eles podem cheirá-lo.
Notavelmente, a melhora veio com um neófito no profissional no banco de reservas. Zé Ricardo era o técnico do sub-20 do clube no início do ano e foi chamado a assumir quando Muricy Trabalho, um dos velhos duques do futebol brasileiro, foi obrigado a sair por um problema cardíaco. Poucos esperavam que o interino se firmasse, mas ele se firmou e agora é o cérebro por trás do que parece o início de uma brilhante nova era.
Ele é chamado de “Ricardiola”, mas na verdade a comparação com Pep Guardiola não resiste a um grande escrutínio. O Flamengo pode ter muita posse de bola (52,3%, a quarta maior porcentagem na Série A) e passar a bola mais que a maioria (448.8 por jogo, o quinto maior) mas não há um grande evangelismo tático na sua abordagem.
Ataques costumam ser rápidos e confiar em volume mais que em intricada construção de jogadas. Energia e agressividade são as palavras-chave.
Seu rápido sucesso se deve mais a seu estilo aberto e próximo, que uniu o elenco. Ele falou de “treinabilidade” e “laços de respeito” entre ele e seus jogadores, que confirmam que ele dá grande importância a relações pessoais e ao trabalho duro. “Zé vem do futebol de base, então tem muita paciência conosco. Ele melhora os jogadores, os enche de confiança”, diz o meia-atacante Gabriel. O ex-armador do Brasil Diego, que já foi treinado por muitos técnicos, concorda: “Você não se torna técnico do Flamengo por acidente. Ele é um cara muito inteligente, que se expressa muito bem. E está fazendo um trabalho sensacional”.
Uma série de jogadores antes desprezados começaram a provar seu valor com o novo técnico. Rafael Vaz barrou o ex-zagueiro do Brasil Juan com uma sequência de boas atuações na zaga, com uma média de 5,6 cortes de bola por partida e saindo da sua função de tal maneira que uma gloriosa assistência de 37 metros para o primeiro gol do Flamengo no domingo não surpreendeu. O goleiro Alex Muralha, com nove jogos sem sofrer gols e 57 defesas com Zé Ricardo no cargo, foi chamado para a seleção por suas atuações, e muitos acham que o meio-campista Willian Arão (2.8 desarmes por jogo) será o próximo. Gabriel redescobriu seu futebol após duas temporadas ru8i8ns, enquanto veteranos como Márcio Araújo (71 roubadas de bola) e Pará se tornaram homens-chave após aproveitarem ao máximo suas chances.
Há nomes mais relevantes no time, mas eles complementam seus colegas em vez de os ofuscarem. Zé Ricardo se recusou a acelerar a volta de Paolo Guerrero ao time titular após problemas físicos e não teve dúvidas de tirar Diego no primeiro tempo contra o Palmeiras, apesar da possibilidade de irritar a torcida e o jogador. Na ocasião, o ex-astro do Werder Bremen e do Fenerbahce aceitou a decisão. “Não importa quem joga ou quem é substituído, ninguém fica frustrado. O grupo respeita as decisões dele”, insiste Vaz. “Ele pode não ter treinado nenhum outro time, mas ele tem o elenco na palma da mão”.
Nem tudo é perfeito. Sem Guerrero, o Flamengo sente falta de um artilheiro de fato no ataque: nenhum jogador fez mais de quatro gols nos 26 jogos. Leandro Damião teve um começo promissor desde sua estreia tardia em agosto, com uma média de 2,9 chutes por partida, mas sua atuação contra o Figueirense - um pênalti perdido, uma chance clara de gol desperdiçada - sugere que ele ainda tem um caminho a andar para voltar a ser o goleador de algumas temporadas atrás. Não fez falta nessa ocasião, mas 11 das 15 vitórias do Flamengo foram por um gol de diferença, e campeonatos podem mudar numa única chance.
Zé Ricardo deve estar satisfeito que seus meia-atacantes estejam contribuindo tanto no terço final do campo: Diego, Gabriel, Fernandinho, Alan Patrick e Everton fizeram juntos oito dos últimos dez gols do Flamengo. Há muitas opções. Mas ele certamente adoraria que as torneiras se abrissem para Damião ou Guerrero - ou até o inconstante Marcelo Cirino - para diminuir um pouco a pressão.
Por enquanto, com ou sem cheiro, o Palmeiras continua na frente. Mas o status do Flamengo como sérios desafiantes - estatísticos da InfoBola colocam sua chance de erguer o troféu em 39% - é inegável e é uma prova do belo trabalho de Zé Ricardo. Não espanta que a torcida esteja comparecendo em massa onde quer que o time vá.