Renato Veltri: Flamengo x Outros no Carioca: não tem nada a ver com dinheiro
Mais um ano começa e os chatérrimos estaduais abrem o calendário do futebol brasileiro. E como o Campeonato Carioca segue com os direitos de transmissão vez indefinidos, o imbróglio a respeito de quem passará os jogos de TV e quanto vai pagar para cada clube é inevitável.
E o Flamengo conseguiu o que sempre quis: ganhar mais que os rivais locais. Ou ao menos ter a oferta de receber mais. A notícia de que havia uma oferta para que o Flamengo ganhasse 18 milhões enquanto os outros clubes grandes ganhariam nove gerou reações engraçadas nos rivais e erradas nos flamenguistas.
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De um lado, os rivais reclamavam do valor. Os “bilionários” iludidos com a suposta fonte inesgotável de dinheiro sendo despejada em seus cofres, passaram a desdenhar do dinheiro. Enquanto isso, os flamenguistas apontavam um erro financeiro. Segundo eles, não faria sentido abrir mão de 18 milhões há dois anos, fracassar em seu projeto solo, e agora aceitar esse valor sem correção.
Ambos não vêm a coisa como ela realmente é: não é sobre dinheiro, é sobre poder e influência. Sejamos francos, 18 milhões não cobre um mês de folha salarial do Flamengo. Inclusive, proporcionalmente nove milhões fazem muito mais diferença no orçamento dos outros três do que os 18 no nosso.
Quando o Flamengo fez a jogada errada de romper com a Globo há dois anos, se apoiava na suposta existência de uma nova onda política que iria abalar as estruturas do futebol e da sociedade brasileira. Na cabeça dos dirigentes, a Rede Globo iria perder prestígio e importância. O Flamengo então pleiteia ganhar mais que seus rivais, exigindo um valor que era irreal dentro do rendimento do campeonato. Foi uma proposta para ser recusada.
Àquela altura, o Flamengo julgava não precisar do poder da FERJ e da Globo. Além disso, tentava se criar como um novo polo de poder junto a uma emissora de televisão que indicava crescimento com o novo governo. Mas as coisas mudaram, a onda que se acreditou ser irresistível e gigante, se mostrou bem menos que isso.
E agora o Flamengo volta, fracassado nesse seu projeto megalomaníaco, mas com uma conquista política que não poderia ter no contrato anterior: a demonstração efetiva de que deve ganhar mais que os outros. A postura anterior do Flamengo nas negociações da Globo era a de pedir mais, nunca de pedir que os outros ganhassem menos, seria antipático demais.
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Agora, na nova negociação, não foi um pedido do Flamengo, mas da negociadora dos direitos, que o Flamengo tivesse mais que os outros. Mas não aumentando os valores pagos ao Flamengo, e sim diminuindo o dos outros. Com isso o Flamengo consegue demonstrar sua força perante àqueles que pagam.
De tempos em tempos se fala em redistribuir os valores de transmissão do Campeonato Brasileiro tendo um único objetivo: tirar dinheiro de Flamengo e Corinthians. Os torcedores de times ditos grandes como Botafogo e Atlético Mineiro se utilizam de pequenos como Juventude, Cuiabá e afins para falar da grande disparidade que é essa distribuição.
Com esse novo movimento, o Flamengo demonstra força não só para manter a maior fatia no campeonato nacional mas para mudar o status quo do estadual, passando a ganhar mais que os outros. Não é dinheiro, é exercício de poder e influência. É demonstração de que os 40 milhões de torcedores, para o mercado, importam muito mais do que um dono bilionário.
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Essa situação me lembra o episódio final de uma das temporadas de Peaky Blinders. Nele, Thomas Shelby, após distribuir uma fortuna entre sua família, lhes dá a notícia que seriam todos presos. O protagonista faz um discurso sobre como eles jamais seriam aceitos pela elite, não importava quanto dinheiro eles tivessem.
Para não dar spoiler, não contarei o que Tommy faz para mudar isso, mas o ponto é que ele percebe que precisava de algo além de dinheiro para ser realmente relevante. Nós temos algo além do dinheiro, nós temos nós. E nós precisamos exercer, reforçar, mostrar que nós podemos.
E isso ganha contornos ainda mais relevantes com a recente notícia de que a nova postura dos interessados na negociação é ignorar Vasco e Botafogo, enquanto tenta convencer o Flamengo a aceitar 20 e o Fluminense 14. Os dois “bilionários” foram ignorados em prol de não desagradar o mais poderoso, ao mesmo tempo que tentam comprar com um segundo, dando a ele benesses tiradas dos outros dois.
E isso se liga, por exemplo, à parceria do Flamengo com o Fluminense no Maracanã. É verdade que o Fluminense traz certo prejuízo econômico na administração do estádio, mas tê-lo como aliado numa hora dessas vale muito. É importante ter um Fluminense que esteja suscetível a aceitar esse acordo e dar ao Flamengo essa vitória. Um valor de 18 ou 20 milhões de reais tem pouca relevância para o Flamengo atual. Assim como o valor de oito milhões também seria para Vasco e Botafogo, segundo alguns de seus torcedores. Mas a moral imposta na negociação, a se confirmar, é mais um triunfo do Clube de Regatas do Flamengo.
Renato Veltri é advogado, formado pela UFRJ em 2019 e flamenguista formado pela irmã dele na final da Copa do Brasil de 2006. Twitter: @veltri_renato