Reflexões sobre os 65 anos do Maracanã: Entrevistamos o sociólogo do esporte Bernardo Buarque de Hollanda
Diogo Almeida
A última semana foi de comemorações pelos 65 anos do Estádio Mario Filho, nosso Maracanã. O portal Mundo Rubro Negro convidou Bernardo Buarque de Hollanda, autor do ensaio “O Maraca é nosso? | As torcidas do futebol do Rio de Janeiro e suas percepções sobre o novo Maracanã” para uma pequena entrevista onde conseguimos, mesmo que de modo bastante superficial, inserir perspectivas e aspectos socioeconômicos na relação do mítico estádio.
Professor da Fundação Getúlio Vargas, autor dos livros O clube como vontade e representação: o jornalismo esportivo e a formação das torcidas organizadas de futebol do Rio de Janeiro (2010), O descobrimento do futebol: modernismo, regionalismo e paixão esportiva em José Lins do Rego (2004), ABC de José Lins do Rego (2012) e o recente Hooliganismo e Copa de 2014 (2014). O professor Bernardo é uma força ativa na construção do Pensamento esportivo brasileiro, uma voz que precisa ecoar não apenas nas salas de aula. Precisa também ser ouvida por aqueles que cantam, pulam, gritam (ou não) nas arquibancadas brasileiras.
Filho de brasileiros exilados, nasceu na Costa Rica em 74 e cresceu no Rio. Graduou-se, fez mestrado e doutorado na cidade. Em Paris, na Maison des sciences de l’homme, fez pós-doutorado. Desde 2010 é professor da FGV e também constrói saberes no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da mesma instituição. Suas linhas de pesquisa vão da história literária a sociologia do esporte.
Mundo Rubro Negro: Na semana passada comemoramos o aniversário de 65 anos do Maracanã. Depois da reforma para a Copa 2014 o estádio sofreu grandes alterações. O que ficou do antigo “Maior do Mundo” e o que representa o novo Maracanã com padrão FIFA?
Bernardo Buarque de Hollanda: Sucedeu com o Maracanã o mesmo que ocorreu com o estádio de Wembley, construído em 1923, destruído no final dos anos 1990, para ser reinaugurado em 2003, na capital londrina. É um eufemismo dizer o Maracanã foi reformado. Ele foi destruído e reconstruído. Para o bem e para o mal, não cabe a mim juízo de valor. Haverá sempre aqueles que dirão nostalgicamente que sua aura findou, que nunca mais se verá o geraldino ou o arquibaldo a frequentar o espaço. Outros celebrarão o conforto do novo estádio. Impossível agradar a todos. Mas, assim como Wembley, a dimensão icônica do estádio, preservado no mesmo local, continuará a acionar a memória coletiva.
O perfil da torcida do Flamengo no estádio mudou? Já existem pesquisas acerca desse “novo” público?
Solicitei a um colega de pesquisa a confecção desses dados.
NOTA: O Professor nos enviou uma pesquisa. Caso queira baixar o link é esse: http://bit.ly/1K9KN8q
Há pouco mais de dois anos o Maracanã foi reaberto após uma modernização e adequação aos padrões internacionais das arenas multiuso. A “cultura torcedora” nos jogos do Flamengo mudou?
Sim, mas isso não chega a ser uma particularidade da torcida rubro-negra, ainda que por suas características sociais, esta tenda a resistir em maior grau ao processo de imposição de um novo modelo comportamental no interior dos estádios. Como todos sabem, vivemos uma fase do futebol globalizado em que a espetacularização modificou a função e a natureza dos estádios. Se, no passado, uma praça de esportes necessitava de amplas capacidades para absorver o maior número de pessoas, nos dias de hoje seu tamanho não é decisivo como dantes. Podemos dizer que a figura do telespectador afigura-se mais importante na atualidade que a do espectador presente no estádio. Com a redução de sua capacidade, as atuais arenas tendem igualmente a redefinir o público desejado nas suas dependências. As massas trabalhadoras que marcaram a formação do século XX já não fazem mais sentido nos estádios ultramodernos do início do século XXI. É este fenômeno social que incide atualmente também no Brasil, na esteira de um megaevento esportivo cujo impacto demarcou os espaços físicos que circundam o campo de jogo.
Em 2013, o Sr. realizou uma pesquisa com membros de Torcidas Organizadas. Foi uma surpresa constatar que 68% desses torcedores, frequentadores sistemáticos do estádio, se mostraram satisfeitos com a renovada configuração do estádio?
Sim, mas deve-se considerar que toda sondagem de opinião constitui um retrato do momento. O Maracanã acabava de ser reinaugurado, o que gerou uma série de comparações com o seu estado no final de 2011, por parte daqueles que responderam à aplicação de questionários, o que foi feito nas dependências do estádio. Isto mostra que a visão estereotipada do torcedor organizado como tão somente aquele pertencente às classes subalternas deve ser revista. Ele é muito mais heterogêneo do que parece à primeira vista. Ademais, é um ledo engano supor que a torcida não quer conforto. O ponto que criticamos é que o suposto conforto tende a ser atrelado a uma armadilha, pois o bem-estar do frequentador do Maracanã acaba condicionado à elitização, sem que haja espaço para a manifestação da emoção coletiva.
Em 2005, o então prefeito Cesar Maia e a governadora Rosinha Garotinho deram o aval para a construção do estádio na Gávea. Marcio Braga, presidente do Flamengo à época afirma que conseguiu todas as licenças e autorizações necessárias aos órgãos municipais, estaduais e federais. E atendia todos os requisitos urbanísticos. Sérgio Cabral depois retirou esta autorização de construção do estádio na Gávea e tranqüilizou o clube dizendo que participaríamos do processo de licitação. Ou seja, poderíamos vir a administrar o Maracanã. E quando o edital saiu os clubes se viram proibidos de entrar na disputa. Qual sua visão sobre a atual administração do Maracanã? Um consórcio formado por Flamengo e Fluminense não fortaleceria os clubes?
Estamos de fato diante de um problema para os clubes do Rio. O Brasil constituiu historicamente um modelo de estádio público, como o Pacaembu em São Paulo e o Maracanã, no Rio. Com isto, dispensou-se por décadas a necessidade de os clubes terem os seus estádios particulares no eixo Rio-São Paulo. A Copa foi a ocasião para uma mudança de paradigma, sendo que a cidade de São Paulo “resolveu” este problema com a construção das arenas para dois dos seus grandes clubes, a exemplo do Corinthians e do Palmeiras. Como o simbolismo do Maracanã fez dele a referência arquitetônica para a Copa de 2014, os clubes cariocas assistiram à passagem de poder do governo do Estado para um consórcio problemático, constituído inclusive com acionários de moral duvidosa, como Eike Batista. Em contrapartida, o fortalecimento da dupla Fla – Flu é mais do que necessária, pois serão os seus usuários mais frequentes e que efetivamente darão vida ao equipamento esportivo.
O que está certo e o que está errado quando falamos de elitização no futebol?
De fato a expressão se vulgarizou, a ponto de se tornar vaga e pouco precisa. Em meu entendimento, como o Brasil é um país historicamente marcado pela modernização reflexa, isto é, por um processo de desenvolvimento cuja característica primordial é a atualização com dimensões político-econômicas que vêm de fora para dentro, e que não se colocam como necessidades surgidas da própria realidade social. A “elitização” neste sentido diz respeito à assimilação de um modelo internacional cujo estopim foi a Inglaterra dos anos 1990. Reduzir a escala do estádio, de grande para pequeno e médio porte, e passar da massa/grupo para a dimensão atomizada do espectador individual, foram processos assimilados no Brasil, dentro do receituário propiciado pela Copa e por seu “padrão FIFA” de estádio. Uma vez passado o Mundial, vemo-nos às voltas com o paradoxo: arenas novas para um espetáculo de baixa qualidade técnica, com um acréscimo de valor ao ingresso que não encontra correspondência no que se é visto como produto oferecido. Este descompassado, implementado sem adequações à realidade brasileira, é que se torna a meu ver o efeito perverso da “elitização”.
O Maracanã dos anos 50 até o início dos anos 90, quando manteve sua arquitetura original, sempre foi o modelo ideal para o futebol como entretenimento popular, independente das mazelas de infra-estrutura? Temos a impressão que todos os torcedores dessa época têm uma história de perrengue e desconforto.
Segundo os institutos de pesquisa, como o IBOPE, até a construção do Maracanã, o futebol no Rio de Janeiro só perdia para o cinema em termos de popularidade e de opção de lazer. Após a inauguração do estádio, as multidões sacramentaram-no em preferência popular. Mas é evidente que existe uma idealização pretérita, que começou a ser construída com o filme “Garrincha, alegria do povo” (1963) acerca do torcedor do Maracanã, numa exaltação da suposta “democracia social” de que o estádio era a encarnação, sem considerar a estrutura hierárquica já existente na concepção original, em que as subdivisões escalonavam o frequentador do estádio: do geraldino ao arquibaldo, da cadeira comum à especial, do camarote à tribuna de honra, do anel inferior ao anel superior, e assim por diante.
Como o programa de Sócio-Torcedor pode ajudar a trazer de volta para o Maracanã aquele torcedor que perdeu o hábito de ir aos jogos?
O programa Sócio-Torcedor parece estar sendo bem sucedido em diversos clubes brasileiros. Em São Paulo, por exemplo, a atratividade da fidelização relaciona-se à construção ou à reforma de novos estádios, bem como à introjeção do discurso de que a arena consiste na “casa” do clube e, portanto, do torcedor. Como o Maracanã ficou sujeito às injunções políticas da sua nova administração, esta percepção tem sido dificultada no Rio de Janeiro. Mas é um caminho que precisa ser trilhado e que contribuirá para a apropriação do estádio como a “casa rubro-negra”.
O Flamengo está errado em preferir ganhar dinheiro com um ingresso mais caro mesmo que o público não seja bom do que diminuir o valor do tíquete mas engrossar o coro nas arquibancadas?
Há jogos e jogos, campeonatos e campeonatos. Deve haver bom senso e algum tipo de critério. Criar promoções e atratividade às partidas é uma necessidade de um clube que cultiva o ideal de ser uma agremiação popular. Para que não volte a ser o clube pré anos 1930, anterior aos ídolos negros que popularizaram o time, como Domingos da Guia, Leônidas da Silva e Fausto, na esteira das mudanças introduzidas por José Padilha durante a sua gestão no clube. Majorar preços sem considerar as circunstâncias e a qualidade dos torneios parece ser uma estratégia elitista, que não condiz com a tradição clubística do Flamengo. A meu juízo, o princípio deve ser o seguinte: o valor do ingresso tem de fazer jus à qualidade do espetáculo oferecido e ao seu grau de importância.
O que esperar da relação Torcida do Flamengo x Maracanã nos próximos anos?
Isso dependerá da conjuntura e das diretrizes políticas do clube nos próximos anos. Cada torcida tem a capacidade de se apropriar de um espaço futebolístico. Veja-se o que fez a torcida do Cruzeiro com o Mineirão e a torcida do Atlético com o Independência, para ficarmos no exemplo de apenas um estado. Creio que, tendo o maior volume de torcedores da cidade, a torcida rubro-negra tem o poder de se apropriar na mesma proporção do Maracanã.
Para uma leitura mais profunda sobre a questão das novas “Arenas FIFA”, o Blog da Boitempo fez um dossiê com artigos importantes, e vale a pena mesmo conferir: http://blogdaboitempo.com.br/megaeventos/
Leia também o artigo do professor Bernardo Buarque de Hollanda, que motivou esta entrevista: http://blogdaboitempo.com.br/2014/06/15/o-maraca-e-nosso-as-torcidas-de-futebol-do-rio-de-janeiro-e-suas-percepcoes-sobre-o-novo-maracana/
Também quero agradecer à Boitempo pelas fotos que ilustram esta postagem, retiradas do próprio artigo acima citado.