Saudações flamengas a todos,
Hoje, em homenagem ao Dia de Finados, venho respeitosamente recordar alguns flamengos que nos deixaram enquanto defendiam as cores rubro-negras, eram formalmente vinculados ao clube. Soldados que pereceram em combate. Em silêncio e reverência, deixo suas histórias.
Um Feriado de reflexão e paz a todos.
BAHIANO (1916);
Orlando Mattos já vislumbra o epílogo de sua vitoriosa carreira.
Vive aquele que é, provavelmente, seu último ano como “sportman”. Sairá da vida de rapaz, virará homem. Etapa final de estudos, noivado definido, emprego já encaminhado após a formatura. A prática de futebol irá se tornar restrita a esporádicas diversões em férias, ou, o mais provável, ao recôndito de memórias que já se antevêm fartas.
Há o que contar. O início no Fluminense, os primeiros êxitos no tricolor da Rua Guanabara, a polêmica da barração de Borgerth, a dissidência, a cisão, a nova vida no irreverente, inquieto, informal, despojado CR Flamengo e seu “Departamento de Esportes Terrestres”, o primeiro jogo, o primeiro Bicampeonato em 1914-15.
Sério e compenetrado em sua vida acadêmica, em nada lembra o irreverente, irrequieto, arisco e abusado right-forward (ponta-direita) que, sob a alcunha de “Bahiano”, enlouquece defesas adversárias e plateias com seus meneios, seu gingado e seu gestual marrento, que provoca zagueiros, a ponto de suscitar recorrentes censuras nos sisudos jornais da época (“o comportamento de Bahiano não é compatível com os preceitos que regem a boa prática do desporto”). Que é dotado de um cruzamento rasteiro mortífero e preciso, que sabe “fechar em facão” para concluir, que é dotado de faro goleador.
Inesquecíveis histórias...
A temporada de 1916 vai chegando ao final. Bahiano já não pode atuar com a mesma regularidade pelo Flamengo. Joga quando o apertado calendário dos estudos permite. Em setembro, já deslocado como “center-forward” (centroavante), enfrenta o Botafogo em General Severiano, partida válida pelo Campeonato Carioca.
O empate em 1-1 sela sua última partida pelo Flamengo.
Pouco depois, é convidado a participar de um amistoso entre um Selecionado Carioca e um Scratch formado por ingleses que atuam no Rio de Janeiro. Sofre um corte profundo na coxa, motivando o tratamento de praxe, à base de linimentos e ataduras. Pouco preocupado com o que parece ser algo de rotina, retoma sua atividade normal, inclusive com corridas e treinamentos.
Mas o ferimento não regride. A perna incha, entumesce, torna-se quente, dolorida. Bahiano agora anda com dificuldade, manca. Sente tremores, empalidece. E cai de cama.
Prostra-se ao leito, lutando contra um ferimento que infecciona e rebenta num abscesso que infesta a musculatura interna, minando aos poucos e de forma inapelável sua energia vital.
Após 25 dolorosos dias, o desenlace que põe fim à sofrida agonia. Vítima de septicemia, falece Orlando Mattos, o Bahiano, num desfecho que consterna todo o mundo esportivo carioca. Ao enterro, concorrido, afluem jogadores, dirigentes, torcedores e curiosos em geral.
O Flamengo atua com faixas de luto em seu uniforme na partida seguinte (ironicamente, contra o mesmo Botafogo). A LMSA (entidade que rege o futebol carioca) faz constar em ata moção de pesar pela morte do jogador. A foto de Bahiano, emoldurada em um quadro, é colocada ao lado da galeria de ex-presidentes na sede do rubro-negro.
É o epílogo. De sua carreira. E de sua vida.
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CASTILLO (1940)
Argentino, vem contratado junto ao River Plate para atuar como ponta-de-lança, pelo lado esquerdo (ou “camisa 10”). No entanto, possui dificuldades para se firmar no início, em função de um problema no joelho, que o atrapalha durante todo o primeiro semestre.
Finalmente livre da contusão, estreia em um amistoso contra o São Paulo, no Pacaembu. Marca um gol na vitória flamenga por 2-0 e agrada. Começa a ganhar sequência. Forma com o ponta-esquerda Jarbas uma ala que passa a chamar a atenção da crônica. É um jogador técnico, aplicado e goleador.
O Flamengo não vai bem no Campeonato Carioca, mas lidera o Torneio Rio-SP. Castillo vive ótima fase, e o time, com sua presença em campo, apresenta sensível melhora de rendimento. A tabela marca uma partida contra a Portuguesa, pela competição interestadual, no Pacaembu. O Flamengo voa em campo e enfia 9-1 nos paulistas. Castillo, em sua melhor atuação pelo rubro-negro, marca dois gols.
Enfim, o futuro parece sorrir para o jovem simples, que deixa Buenos Aires em busca de um salário melhor para sustentar sua mãe e irmãs.
Apenas parece.
O Flamengo irá enfrentar o Vasco, agora pelo Carioca. Castillo falta a dois treinos. A diretoria pensa em punir o jogador, mas logo irrompe a verdade. O argentino está acamado, após um mal-estar e fortes dores de cabeça e nas costas.
Passam-se alguns dias, e o estado de Castillo não melhora. Um médico o examina e determina a hospitalização imediata. O argentino padece de agudas complicações decorrentes de diabetes, doença que escondera da diretoria do Flamengo, receoso que isso impedisse sua contratação.
O quadro se agrava. Castillo recebe a extrema-unção. E não resiste muito tempo. Fenece poucas horas após seus companheiros derrotarem o Vasco (3-0).
O enterro é tumultuado e triste. O caso de Castillo acende uma forte discussão, que levanta a necessidade de maior rigor na realização dos exames de admissão de jogadores de futebol.
Resta apenas a frustração impregnada nas retinas daqueles que se encantaram com o bonito futebol de Julio Castillo.
GILBERTO CARDOSO (1955);
Restam cerca de cinco segundos.
Tudo parece consumado. Derrota por um ponto, dois lances livres à disposição do adversário. É convertê-los, e será o fim.
Um homem estaca, pálido, suor gelado. Arfando em seu paletó, não desce, como de costume, para festejar seus heróis. Apressado, entra em seu carro. Tenta dirigir, desiste após poucas quadras. Quase desfalecendo, consegue sussurrar a um taxista, “leve-me ao hospital, estou muito mal”. ´
É encaminhado de imediato à emergência, mas já há pouco a fazer. Agoniza. E expira.
É o fim da trajetória de Gilberto Cardoso, provavelmente o mais popular Presidente da história do CR Flamengo. Não sem motivos. Responsável por uma profunda e bem sucedida reestruturação de um clube já espremido por uma série de dificuldades econômicas e financeiras, devolveu-lhe o protagonismo, especialmente no futebol, onde já amargava um incômodo jejum de títulos. Com dedicação integral ao clube, fazia absoluta questão de acompanhar todo o qualquer evento em que o Flamengo estivesse envolvido, seja nos campos, quadras, raias, ringues ou piscinas. Carismático e extremamente solícito, soube angariar o respeito e a afeição mesmo de rivais.
E agora, quando o Flamengo está prestes a conquistar o tricampeonato do futebol, Gilberto se vai.
O enterro mobiliza todo o cenário esportivo do Rio de Janeiro. Em uma cena desconcertante, uma multidão de remadores, futebolistas, nadadores, atletas das mais diversas modalidades, que defendem as mais variadas cores, caminham em silêncio, reverenciando a memória do dirigente. Há um genuíno e sincero sentimento de tristeza e de perda. O Flamengo sangra e chora.
Passam-se cinco meses. Após um confuso e arrastado campeonato, o Flamengo chega à Final do Carioca contra o América. E vence. E conquista o segundo Tricampeonato de sua história, consagrando o Rolo Compressor de Joel, Evaristo, Zagalo, Rubens, Dequinha e Pavão, e do Feiticeiro Fleitas Solich, e do jovem Dida. Enlouquecidos pelo triunfo, vários jogadores, torcedores e mesmo dirigentes partem em romaria ao Cemitério São João Batista, para reverenciar, agradecer, rezar e deixar uma faixa de tricampeão no túmulo de Gilberto Cardoso.
É a derradeira homenagem ao homem que, com sua fé, amor e tenacidade, tornara tudo aquilo possível.
GERALDO (1976)
“Senhor Geraldo Cleofas Dias Alves.”
Sente-se desfalecer por dentro à mera menção de seu nome por aquela voz feminina impessoal, anasalada, algo entediada. Está trêmulo, as mãos geladas, o peito apertado. Transpira. O médico, cordial, tenta injetar-lhe ânimo, calma. Mas termina por ministrar-lhe um sedativo.
Agora parece mais relaxado, embora a alma fervilhe. Ouvira por quase um ano a mesma cantilena, “tenha calma, é uma operação de rotina, é quase como extrair um dente, você sairá andando ainda de manhã”. Mas nada, absolutamente nada, terá sido capaz de aquiescer-lhe o espírito, de aplacar o pavor, a fobia quase irracional a tudo o que fosse relacionado a qualquer intervenção clínica, médica, o diabo.
Precisava daquela cirurgia. O Departamento Médico fora claro. A crônica amigdalite estava atrapalhando sua carreira, e provavelmente era a causa para as sucessivas lesões com que vinha convivendo recentemente. A extração das benditas amígdalas, procedimento extremamente simples, seria capaz de lhe conferir estabilidade e regularidade, tão necessários em um momento de definição para a talentosa geração que começava a florescer e a se firmar no profissional do Flamengo, após um deslumbrante início na já longínqua trajetória do Campeonato de 1974.
Está deitado no leito, roupão verde-claro como as lúgubres paredes do centro cirúrgico. Mesmo medicado, ainda treme, olhar angustiado, arrepiado com o soturno silêncio somente quebrado por um intermitente e insuportável “bip” das traquitanas que lhe monitoram pulsação, temperatura, essas coisas. Recebe um calmante e a anestesia. O médico o tranquiliza, “está tudo bem”. Grogue e sonolento, mal percebe as inquietas e seguras mãos lhe abordando os derredores do pescoço. Um meneio de ferro aqui, uma gelada navalhada ali, depois um zigue-zague que lhe provoca cócegas. E está pronto.
“Não disse? Tudo tranquilo. Está feito”.
O pior parece haver passado. Segue deitado, quase aliviado. Ainda terá que permanecer algum tempo ali, até passar o efeito da medicação. Ouve relatarem que pulso e pressão estão normais. Enfim, permite-se um átimo de relaxamento e já projeta a volta pra casa, pros treinos, pra vida. No entanto, subitamente sente um torpor, o ar lhe falta. A visão foge-lhe turva, os sentidos nublam, precários. A consciência opalescente mal percebe a correria, o frenético apertar e desapertar de botões, as sôfregas injeções. Sacodem-lhe, dão-lhe socos, choques. Mas já nada sente. Está leve, etéreo, envolto por um ofuscante clarão que o abraça e o reconforta, trazendo uma sensação de paz, de sossego que pareciam inacessíveis. E vai embora.
Vai embora o passarinho, o artista indomável de uma geração de craques da bola. O gênio capaz de praticar um futebol anárquico, moleque, dado a dribles desconcertantes, mas ao mesmo tempo altivo, aristocrático, imprevisível. O armador que vem de trás, visão ampla, inteligência acima da média. Imparável, imarcável, o contraponto perfeito à técnica irrepreensível e racional de Zico, seu amigo inseparável e expoente da turma.
Dois meses se passam. O Flamengo entra em campo de calções negros, que manterá até o final da temporada. É um amistoso contra a Seleção Brasileira. 150 mil almas veem Zico, aos prantos, jogar e fazer misérias em campo e ganhar de Pelé. Às lágrimas, todo um Maracanã de pé, “Ge-ral-do, Ge-ral-do”...
Aquele Flamengo ganhará o Brasil, o Mundo. Mas nunca, jamais, se esquecerá do Passarinho Assoviador.
DOMINGOS BOSCO (1982)
A Gávea ferve.
A perda da Libertadores e do Estadual faz emergir uma caudalosa torrente de acusações, ofensas, dedos na cara, brigas das mais distintas matizes. Logo surgem os nomes. Os bodes.
O preparador físico José Roberto Francalacci, responsabilizado pela queda de rendimento do time, que se arrasta no final dos jogos, é o primeiro. Entra em pesado atrito com Carpegiani e, após duríssimas acusações e ofensas pessoais, deixa o clube após vários anos de carreira. Depois, Nunes também entra em choque com o treinador após distribuir fartas ofensas e ilações em uma entrevista e é afastado. Por fim, o próprio Carpegiani, que parece sofrer um processo de fritura por parte de uma diretoria que, dividida quanto à permanência do treinador, não esconde a realização de sondagens para a contratação de Carlos Alberto Parreira.
São problemas e mais problemas, enfrentados com a costumeira intensidade por Domingos Bosco. O supervisor passa horas, dias, semanas, pendurado em telefonemas e reuniões, tentando apagar incêndios, aparar arestas, costurar acordos. Consegue encaminhar a renovação de Carpegiani. Está imerso na tentativa de reabilitação de Nunes. Tenta injetar força e entusiasmo a um grupo abatido.
Mas a saúde cobra seu preço.
O primeiro sinal surge no casamento de Tita. Um coágulo sanguíneo no braço o faz sentir-se mal. Removido às pressas, por pouco evita a amputação. Bosco sofre de endocardite, uma inflamação no coração que faz o órgão expelir coágulos junto com o sangue. O tratamento: medicamentos e repouso. Impossível, para sua personalidade agitada, de dínamo. Passam-se algumas semanas e dessa vez Bosco sente-se subitamente mal, em sua casa. Desmaia. Quando chegam os médicos, pouco há a fazer. Um dos coágulos alojara-se no cérebro. A morte é quase instantânea.
O Flamengo perde, mais do que um Supervisor, um amigo, a voz da concórdia, o homem que sabia fazer pulsar o seu vestiário.
A Era Zico começa a chegar ao fim.
FIGUEIREDO (1984)
Natal em Salvador.
A perspectiva de férias na aprazível capital baiana seduz alguns jogadores do elenco do Flamengo. Convidados por Bebeto e seu irmão, Nilton, os zagueiros Leandro e Figueiredo aceitam permanecerem hóspedes dos amigos durante os festejos natalinos.
Bebeto vai mais cedo, porque ainda irá passar na casa de seus avós, no interior. Embarca em um voo comercial. Leandro, que gosta de dirigir, prefere ir de carro, aproveitando a estrada. Figueiredo, receoso dos perigos que rondam as rodovias brasileiras, cogita também viajar em um voo de carreira, mas é convencido a dividir com Nilton e uma amiga um jatinho, que será pilotado por alguém de confiança, o que reduzirá bastante os custos com transporte.
Figueiredo anda precisando descansar, após aquela que certamente terá sido sua pior temporada desde que, revelado em uma Copa SP pelo Nacional local, chegara ao Flamengo, já no distante ano de 1979. O ano que ora se encerra deveria ter demarcado a afirmação definitiva do jovem e talentoso zagueiro. Mas tudo deu errado. Falhou clamorosamente na partida que eliminou o Flamengo do Brasileiro, tendo que, pela primeira vez, conviver com forte contestação. Arrebentou o maxilar, passou meses fora e, quando retornou, em seu primeiro jogo, com dez minutos em campo, fraturou o pulso. Ao retornar, viu a zaga preenchida e consolidada com Leandro e Mozer, sem qualquer chance de reedição dos célebres revezamentos ocorridos em 1981 e 1982, quando ostentava a condição de “reserva-titular”. Não, definitivamente não havia sido um ano nada bom.
O monomotor decola do Rio de Janeiro com destino a Salvador. Passará por Vitória e Ilhéus, numa rota “por dentro”, evitando o litoral, para ganhar tempo. É uma opção perigosa. Pouco tempo após sair da capital, a aeronave sobrevoa a Serra do Mar, nos arredores de Nova Friburgo, perto de Cachoeiras de Macacu. Chove muito, a neblina é espessa, pesada. O avião chacoalha, balança, causa certa apreensão aos passageiros, que já não escondem o incômodo. Súbito, um pipoco. Escuro.
A informação rebenta em choque a dirigentes, jornalistas e jogadores. O avião não chegou. Não há notícias. Parece que alguma coisa caiu lá pelos lados do Pico da Caledônia, perto de Nova Friburgo Mas o tempo, em péssimo estado, sequer permite sobrevoo. A espera durará dois dias. A apreensão se converte em angústia, que se transforma em pânico. Os bombeiros, a cada pequeno contato que as condições climáticas permitem, sinalizam com perspectivas cada vez mais sombrias. Então, o tempo melhora o suficiente para uma pequena aproximação. Somente um milagre, o aparelho está espatifado. É mesmo o avião em que viajaram Figueiredo e Nilton. Não há mais esperanças.
Os corpos enfim são resgatados e, sob profunda comoção, sepultados. Bebeto, em estado de choque, cogita encerrar a carreira. Perde seu irmão, seu conselheiro, seu empresário, seu amigo. Nilton, o Niltinho, Flamengo fanático, era o porto seguro, o ponto de estabilidade na carreira do sensível e talentoso atacante. A partir de agora, seu futuro é imprevisível.
Com o terrível acidente, encerra-se prematuramente a carreira de Figueiredo. Ironicamente, em sua última atuação pelo clube, no Fla-Flu da Taça Rio, ostentara a Camisa 10 (Tita, suspenso, dera lugar no meio-campo a Gilmar, passando Leandro a volante, indo Figueiredo para a zaga).
Por uma vez, sentira o gosto de ser o Camisa Dez da Gávea. Uma única. E derradeira vez.
* Alguns colegas poderão estranhar a ausência de Cláudio Coutinho nessa lista. É que, embora sua morte tenha sido profundamente pranteada e sentida, o saudoso treinador não mais era vinculado ao Flamengo em 1981, razão pela qual seu exemplo não faz parte deste texto.
Imagens: Arquivo Nacional
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