Pontos de torcida: futebol, antirracismo e o incômodo necessário
Saudações Rubro Negras, minha gente. Olha a gente pintando mais uma vez por aqui. Hoje com uma pegada mais de usar o futebol como pano de fundo pra fazer uma problematização do racismo no futebol, mas com uma perspectiva de totalidade.
Oras, o futebol não é praticado em Marte, ou num mundo abstrato e etéreo. Ele pode não ser o motor de todas as coisas, mas como ainda é o esporte mais popular desta terrinha, adentra em milhões de vida, produzindo e reproduzindo as mesmas relações de nossa sociedade como um todo.
Do mesmo autor: Caso Gerson: sobre racismo, futebol: discursos e práticas
De certo que, o ocorrido com o Gabigol circulou pelas redes sociais e se pudéssemos apurar e quantificar o central ou as categorias mais presentes nas falas das pessoas, perceberíamos o quão temos considerável desconhecimento sobre o assunto. Tentando dialogar, neste episódio e em tudo aquilo que envolve racismo, vemos uma categoria explicativa de nossa sociedade, composição do sistema de dominação, chamada branquitude, que de modo geral, é que a racialidade do branco, uma visão de mundo constituída no silêncio, na omissão e na prática discriminatória para manutenção de privilégios.
Embora o ideal fosse uma complexificação maior desta categoria, numa tentativa de resumirmos ou exemplificarmos algumas situações concretas, podemos dizer que a branquitude se constitui e se manifesta como situações onde há reconhecimento da discriminação racial, mas nunca entendendo esta discriminação como um dos centros para desigualdade entre pessoas.
E por que estamos dizendo isso? Porque a dúvida é algo recorrente quando uma situação de ato racista é vivenciada por uma pessoa negra. Não uma dúvida de pureza técnica. É a dúvida em cima da vítima, questionando se realmente aquilo aconteceu, que não foi bem assim, que não se ouviu isso ou aquilo. Lembram quando aconteceu algo similar ao Gerson? Pois bem, isto é manifestação clara da estrutura de privilégios se movimentando para sua manutenção.
Leia também: Um clássico pra ensinar em quem Paulo Sousa não pode confiar
Desde do ato discriminatório sofrido por Gabigol, já vimos inúmeras pessoas colocando uma interrogação e devolvendo ao Gabi a prerrogativa de dizer que talvez tenha se enganado. Claro, o clubismo está presente nestas questões. Mas como a ênfase da mácula racista atinge a superfície de privilégios e atinge, individualmente uma construção moral, toda a estrutura, relações e micro relações tendem a procurar silenciar ou transgredir o fato.
É interessante está questão de moral individual, porque por vezes a pessoa se veste de tamanha ofensa em pensar que possa ter produzido ou reproduzido algo racista, que a energia colocada em descaracterizar e desqualificar apontamentos problemáticos é mil vezes maior daquela que é imputada a fortalecer as práticas antirracistas. E claro, não é aqui uma premissa para não existir ampla defesa. Defenda-se, quando possível. Isto tem efeitos, desdobramentos que fortalecem a noção de não existência de racismo contra jogadores negros. Podemos lembrar de outros casos, em especial de dois atletas, que recorrentemente foram alvos de críticas e boa parte delas consideraram somente a dimensão técnica futebolística.
Lincoln e Hugo viveram e vivem as marcas do racismo, infelizmente pela própria torcida. Se você está lendo incomodado, tá dando certo. Para contextualizarmos, os dois jogadores já mostraram deficiências técnicas, já foram irresponsáveis com a profissão, já deixaram muito a desejar e realmente precisam de uma melhora significativa, sobretudo nosso goleiro que ainda é atleta do clube. Ponto. Isso não significa que a horda de chorume, ataques, perseguição, dentre outras coisas, não são expressões claríssimas geradas pela desigualdade de raça. Numa perspectiva de totalidade, para a pessoa negra, resta ou atingir a perfeição ou estar fadada a ser qualquer coisa que não exija muito do sistema de poder, inclusive, inexistir.
Não deixe de ler: LeliaGonzales87anos: Coletivo Negro relembra estudo da antropóloga sobre termo “Framengo”
É nessa hora que incautos esbravejam de diversos cantos, apontando que as críticas são pelas falhas e que não são os únicos jogadores que sofreram algo e nem sofreram algo “só” (sic) por serem negros. Jocosamente, lembramos que a branquitude também acessa na história ou em algum lugar, momentos onde brancos sofreram algo que se possa fazer similaridade (e uma similaridade equivocada, visto que você não transpõe contexto e relação de poder como se tivesse mexendo numa tela de serigrafia sobre uma camisa), para fundamentar que na verdade não houve nada vinculado a racismo ou catam nas próprias falas de um atleta negro arrependido que “o cara admitiu que não era, tá vendo? Vocês veem racismo em tudo, assim não dá pra tocar a luta de vocês”. Até porque você nem sabe o que é racismo (disse o branco).
Em cima destes casos e da nossa dificuldade de – enquanto uma torcida popular, composta por muitas pessoas negras – enxergar além daquilo que tentam determinar o que é racismo e como combater o racismo (com práticas aceitas pela branquitude), os próximos casos seguirão o fio condutor do descrédito, da dúvida, da transgressão de sentido e do silêncio. E eu sei que a gente junto faz barulho pra caramba, ativa, provoca e transforma, quando resolvemos nos organizar para isso. Tá mais que na hora de acenarmos para trajetória antirracista, que não temamos e que tenhamos como objetivo incomodar, partindo da nossa paixão pelo Flamengo e fazendo braseiro por todo canto que rubro negros caminharem.
Referências:
ALMEIDA, Silvio Luiz. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.
BENTO, Maria Aparecida da Silva. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. https://teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-18062019-181514/pt-br.php.