Os 40 anos do título brasileiro de 1980, parte 3: para a eternidade

30/06/2020, 19:12
nunes flamengo atletico 1980

Hora de relembrar o inesquecível desfecho do Campeonato Brasileiro de 1980, primeira grande conquista nacional do Flamengo

Por Emmanuel do Valle – dos blogs Memória Rubro-Negra e Flamengo Alternativo

Chegou enfim a hora de relembrar o inesquecível desfecho do Campeonato Brasileiro de 1980, primeira grande conquista nacional do Flamengo. Foi num 1º de junho há exatos 40 anos que Nunes, em jornada histórica, balançou as redes do Atlético-MG por duas vezes na vitória por 3 a 2 (Zico, também em atuação gigantesca, fez o outro), sacudiu o Maracanã com mais de 150 mil torcedores e entrou de vez para a galeria dos ídolos eternos rubro-negros.

Depois de contextualizarmos o Flamengo e o futebol brasileiro naquele período e contarmos as mudanças enfrentadas pelo time na pré-temporada e na fase inicial do campeonato no primeiro capítulo e de termos rememorado a saborosa revanche diante do Palmeiras na segunda etapa e da grande vitória sobre o Santos na terceira, é o momento de revisitar em detalhes a reta final da competição, começando pela memorável semifinal diante do Coritiba.

Leia antes: Os 40 anos do título brasileiro de 1980, parte 2: uma doce revanche

Ou ainda: Os 40 anos do título brasileiro de 1980, parte 1: tempo de mudanças

O PENÚLTIMO DEGRAU

Treinado por Mário Juliato, o time paranaense fazia ótima campanha mesclando nomes esbanjando experiência – como o centroavante Escurinho (ex-Inter e Palmeiras) e o veteraníssimo ponteiro esquerdo Aladim (ex-Bangu e Corinthians) – a boas revelações e nomes em ascensão, como o zagueirão Gardel, o volante Almir e os armadores Freitas e Vílson Tadei, além do beque uruguaio Taborda, que saíra mal do Corinthians, mas se consagrara no Paraná.

Com esses nomes, o Alviverde sustentou duas marcas expressivas até ali. Uma era ter sido o líder de seu grupo em todas as três etapas do campeonato. Na primeira fase, à frente de Grêmio, São Paulo e Vasco. Na segunda, diante de adversários mais fracos, aproveitou para aplicar goleadas: fez 7 a 1 no Ferroviário-CE e na Desportiva. E na terceira, foi a grande surpresa num grupo com Grêmio, Botafogo e o favorito Corinthians, de Sócrates.

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Na chave P, o clube bateu Corinthians e Botafogo por 1 a 0 em casa – a longa série invicta mantida no Couto Pereira desde o início do Brasileiro era a outra marca expressiva – e, mesmo perdendo para o Grêmio na última rodada em Porto Alegre pelo mesmo placar, avançou às semifinais pelo saldo de gols, à frente do Tricolor gaúcho (que antes havia apanhado de 5 a 0 do Timão). O gol de Gardel contra o Bota, no último minuto, acabou valendo a vaga.

Gardel, porém, desfalcaria o Coritiba no primeiro jogo da semifinal – marcado para a noite de quarta-feira, 21 de maio, no Couto Pereira – após ter sido expulso nos minutos finais da partida contra o Grêmio. Pelo lado do Fla também havia uma baixa das mais importantes: o capitão Carpegiani voltou a sentir o problema muscular na coxa que o levou a ser substituído contra o Santos e ficaria de fora da primeira partida. Adílio entraria em seu lugar.

UMA GRANDE SEMIFINAL

Zico, o dono da braçadeira em Curitiba, seria decisivo ao marcar os dois gols na vitória por 2 a 0. Mas contou com o auxílio luxuoso de Júnior e Adílio. No primeiro, ele tabelou com o lateral, que avançou pelo meio, descadeirou o marcador e fez belo passe na frente para o Galinho tocar na saída do goleiro Moreira. No segundo, já na etapa final, foi o camisa 8 quem limpou a jogada, antes de Zico encher o pé da intermediária e marcar um golaço.

Para a partida de volta, além de ainda não poder contar com Carpegiani, o Fla também perderia Toninho, que recebera o terceiro cartão amarelo em Curitiba e, como era a sua segunda série, foi suspenso por dois jogos. O que o time não esperava é que também fosse perder outros dois de seus principais jogadores ainda no primeiro tempo do jogo, que se converteria num drama inimaginável, antes de se consumar uma classificação com ares de épico.

Buscando reforçar a contenção ao lado esquerdo rubro-negro (de Júnior e Júlio César), o técnico Juliato sacou do time do Coritiba o ponta-direita João Carlos e escalou pelo setor o volante Leomir (que mais tarde defenderia o Fluminense). Mas o Fla começou assustando pelo outro lado, numa escapada de Carlos Alberto, o substituto de Toninho, que recebeu de Tita e bateu cruzado da entrada da área, tirando tinta da trave de Moreira.

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Aos poucos, porém, o Coritiba começou a cozinhar o jogo. Bem postado na defesa, não dava espaço aos homens de frente do Flamengo e tentava sair em contra-ataques. Não chegou, porém, a incomodar Raul nos primeiros minutos. E o Fla também não chegava a se desesperar, já que detinha a vantagem. Porém a partida começou aos poucos a ficar desconfortável, até acontecer o primeiro baque da noite, aos 20 minutos.

Zico deitou à beira do campo sentindo uma fisgada na coxa esquerda. Era uma contratura. O camisa 10 não poderia continuar em campo. Enquanto ele deixava o gramado, substituído pelo ponta Reinaldo, Aladim alçava a bola na área rubro-negra, Escurinho ajeitava de cabeça e Vílson Tadei saía de frente com Raul, tocando de leve por cima do goleiro rubro-negro para abrir a contagem no Maracanã. A torcida do Fla ficava desconfiada.

E logo a desconfiança viraria perplexidade: aos 31 minutos, Luís Freire recebeu pelo lado direito do ataque, livrou-se de Rondinelli, foi à linha de fundo e cruzou. Aladim apanhou num sem-pulo, e estufou as redes, ampliando a vantagem do Coritiba no jogo e deixando os paranaenses a um gol das semifinais. Mas Nunes não deixaria as coisas assim por muito tempo: três minutos depois, ele foi lançado por Andrade, arrancou e fuzilou Moreira. O Fla diminuía.

Imediatamente, os nervos rubro-negros voltaram a ser testados: agora era Júlio César – que vinha em ótima fase – a deixar o gramado lesionado, com uma torção de tornozelo. O centroavante Anselmo entrava em seu lugar, esgotando as substituições do time ainda aos 35 minutos de jogo. Mas nem mesmo a nova baixa interromperia a reação do Fla: dois minutos depois Andrade cruzou da esquerda, Tita ajeitou e Nunes encheu o pé. Era o empate.

A virada chegaria logo em seguida e de maneira apoteótica, como a exorcizar todas as provações pelas quais a equipe passara até ali na partida. Carlos Alberto interceptou passe de Vílson Tadei na intermediária defensiva rubro-negra e arrancou. Deu uma meia-lua no zagueiro Gardel, recebeu um calço do beque, mas seguiu de pé e ao entrar na área, bateu cruzado. A bola voou até quase o ângulo do goleiro Moreira e encontrou as redes. Êxtase no Maracanã.

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Já na etapa final, depois do gol da catarse veio o gol da arte. Aos 27 minutos do segundo tempo, Tita lançou Anselmo da própria intermediária por trás da defesa alviverde, que parou. O camisa 16 arrancou, deu uma meia-lua no goleiro Moreira (que já saía da área) e mandou um lindo toque de cobertura para as redes. Nem mesmo Gardel, que se esticou todo para tentar afastar a bola, conseguiu evitar o golaço, o quarto rubro-negro na partida.

Com a vaga mais do que confirmada (o Coritiba agora precisaria de quatro gols em menos de meio tempo), o Fla relaxou e o time paranaense ainda descontou aos 43, marcando mais um belo gol para a coleção de pinturas daquele jogaço. Vílson Tadei recebeu cruzamento da esquerda, ajeitou e entregou de calcanhar a Escurinho, que aparou e tocou sem deixar cair para Luís Freire. Também de primeira, o meia bateu forte e cruzado, vencendo Raul.

“Não fui falso humilde quando disse que temia esse jogo. Tudo pode acontecer em futebol, pois com a saída de Zico, o time ficou atordoado e sofreu dois gols. Felizmente, conseguimos acordá-lo, graças também ao incentivo da torcida, e viramos o jogo”, declarou Coutinho após a partida, reconhecendo o valor da ótima equipe do Coritiba. De todo modo, o ambiente nos vestiários do Fla era de apreensão com as lesões de Zico e Júlio César.

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A outra semifinal reuniu Internacional e Atlético-MG, que já haviam se enfrentado na segunda fase, quando deram início a uma curiosa tradição, na qual os mandantes não tinham vez: o Inter triunfara no Mineirão (2 a 1) e o Atlético no Beira-Rio (3 a 1). No reencontro, aconteceu algo semelhante: no primeiro jogo, em Belo Horizonte, empate em 1 a 1, o que levou a crer que os gaúchos conquistariam a vaga na decisão contra o Flamengo.

Porém, houve reviravolta em Porto Alegre. Falcão foi vetado de última hora por problemas físicos no time colorado, frustrando a torcida. O baque duplo foi sentido em campo pelo time, que nunca se encontrou e só assistiu ao Galo impor um categórico 3 a 0. O Inter também teve Mário Sérgio expulso, o que gerou a reclamação do volante Batista nos vestiários de que o árbitro deveria também ter dado vermelho a Chicão e Palhinha que “distribuíram pontapés”.

A DECISÃO

Em 1977, um jovem time do Atlético decidira o título brasileiro diante do São Paulo dentro do Mineirão. Eram dois estilos opostos: o jogo técnico, leve e ofensivo – quase romântico – dos mineiros contra o futebol duro, vigoroso e competitivo (na falta de maior qualidade técnica) dos paulistas. O Galo perdeu nos pênaltis. Para a memória, ficou o lance em que o volante são-paulino Chicão provocou uma fratura na perna do talentoso meia atleticano Ângelo.

O tempo passou e o mundo deu voltas. Talvez atribuindo a perda daquele título a uma suposta falta de malícia, o Atlético se reforçou para a temporada 1980. Além do ponteiro Éder, revelado pelo América-MG e trazido do Grêmio, chegaram outros dois jogadores conhecidos pela catimba. Do Corinthians veio o meia-atacante Palhinha, antigo rival no Cruzeiro. E do São Paulo, veio exatamente Chicão, o ex-algoz que agora teria a torcida atleticana ao seu lado.

Estes dois últimos eram os maiores símbolos de um time que sabia muito bem jogar um futebol de primeira linha, mas que também em muitas vezes se valia de cavar faltas, irritar adversários e pressionar árbitros. Foi assim, por exemplo, que na terceira fase o Atlético segurou um valioso 0 a 0 diante do São Paulo no Morumbi e depois um outro empate sem gols diante do Vasco no Mineirão, resultado que o levou às semifinais.

E, passadas as semifinais, o time mineiro esfregava as mãos com a perspectiva de enfrentar o Flamengo na decisão. Estava com os rubro-negros atravessados na garganta precisamente desde o dia 6 de abril de 1979, quando, num amistoso em benefício das vítimas das enchentes em Minas Gerais e que teve Pelé vestindo a camisa do Fla, os cariocas aplicaram um vareio de 5 a 1 num Maracanã com 140 mil torcedores, em jogo transmitido pela TV para todo o país.

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Daí os dois confrontos daquela decisão de 1980 terem sido truncados, picotados, faltosos – bem diferentes dos jogos do Flamengo contra Palmeiras e Santos, por exemplo, mais soltos, de poucas faltas, prevalecendo a técnica. Além disso, no primeiro jogo, o Fla teve três importantes baixas: Toninho (suspenso), Zico e Júlio César (lesionados). O Galo venceu no Mineirão por 1 a 0, com o atacante Reinaldo se aproveitando de um erro de Júnior na saída de bola.

Mas, para os rubro-negros, o lance que marcou mesmo aquela partida aconteceu mais tarde, aos 26 minutos da etapa final, após uma bola cruzada por Cerezo por sobre a área do Flamengo. De repente, um bolo de gente se formou perto da trave esquerda de Raul. Médicos, enfermeiros, jogadores, repórteres de rádio e televisão. No chão, caído, Rondinelli tinha o rosto – inchado e sangrando – apalpado pelo doutor Giuseppe Taranto.

O Deus da Raça rubro-negro havia levado um empurrão, soco ou cotovelada de Palhinha (a agressão muda de acordo com os diferentes relatos) e se chocara de cabeça contra a trave, fraturando o maxilar e deixando o campo ainda com suspeita de concussão cerebral. Levado aos vestiários, teve de ser contido e sedado. Furioso, queria a forra contra Éder, a quem inicialmente atribuíra a agressão. O clima era muito pesado.

Flamengo e Atlético haviam chegado até aquela decisão com campanhas muito semelhantes. Ambos haviam somado 32 pontos ao longo da competição. O Atlético somava uma vitória a mais (14 contra 13) e o Fla, uma derrota a menos (perdera apenas uma vez, contra duas do Galo). Os dois haviam anotado 43 gols, com o Fla sofrendo quatro a mais (17 contra 13), o que dava aos mineiros uma ligeira vantagem no saldo de gols.

Contudo, pelo regulamento, era dos rubro-negros a vantagem de decidir o título em casa e de jogar pela igualdade no placar agregado – e, portanto, por qualquer vitória no Maracanã para levantar a taça. Isto se devia ao fato de os critérios de desempate levarem em conta apenas os resultados obtidos da terceira fase de grupos em diante, onde começava a “fase final” para a CBF. Nesta reta final, o Fla somara nove pontos contra sete dos mineiros.

Para o jogo do Maracanã, o Atlético iria completo, assim como fora na ida. Já pelo lado do Fla, se Toninho, Zico e Júlio César voltavam, Rondinelli estava fora. “Passei por uma cirurgia muito séria, perdi 40% da minha audição, hoje só tenho 10%. Eu tenho até hoje a parte que é chamada de buco-maxilofacial toda ela amarrada com fios de aço. Não tenho sensibilidade nenhuma no queixo porque os músculos da face foram cortados”, relembrou o zagueiro.

O ÉPICO SEGUNDO JOGO

Com Manguito no lugar de Rondinelli e diante de exatos 154.355 pagantes – maior público da história do Brasileirão até ali e novo recorde de renda do futebol brasileiro – no Maracanã, o jogo começou quente, como se previa. Logo aos dois minutos, Tita fez falta dura em Jorge Valença e já recebeu o primeiro cartão amarelo do jogo. Para o rubro-negro, era o troco do jogo de ida. Mas a primeira chance de gol foi do Atlético, com Palhinha.

Porém, aos sete minutos, o Fla saiu na frente no placar. O zagueiro Osmar arrancou da defesa, mas esticou demais a bola ao passar do meio-campo. Andrade recolheu e entregou a Zico, que fez o passe perfeito para Nunes, exatamente no buraco que o beque atleticano deixara em sua defesa. João Leite deixou o gol desesperado, mas o camisa 9 rubro-negro tocou por baixo, com calma. Começava ali a se consagrar como o Artilheiro das Decisões.

A resposta atleticana, entretanto, foi imediata. Pouco depois do reinício do jogo, Cerezo recebeu na ponta-esquerda e passou a Reinaldo no meio da área. Mesmo marcado, o centroavante conseguiu dominar, contornar Manguito e Andrade, e chutar quase da linha de fundo. A bola bateu na coxa de Marinho e tirou totalmente Raul da jogada. Era o empate relâmpago. E o jogo seguiu equilibrado, com chances para ambos os lados.

Zico sofria marcação implacável e dura por parte dos atleticanos. Aos 17, Chicão fez uma alavanca que poderia até ter quebrado a perna do camisa 10 rubro-negro. A falta foi marcada e dali a cinco ou seis passos, o meia foi aterrado novamente, agora por Cerezo, que recebeu o cartão amarelo. Júnior levantou para a área e Marinho cabeceou com perigo, acertando o ferro de sustentação da rede. João Leite fazia cera e era repreendido pelo árbitro.

Aos 20, Chicão levantou Zico e também recebeu o amarelo. O Atlético fechava a frente da área com Chicão e Cerezo, e o Fla buscava os ataques quase sempre pelo lado esquerdo, com Júnior e Júlio César. Num cruzamento do ponteiro, João Leite saiu em falso e não achou nada, mas Jorge Valença tranquilizou para os mineiros. Empurrado pela torcida, cantando a plenos pulmões já refeita do susto do gol de empate, o Flamengo sufocava o Atlético.

Aos 23, Júlio César bateu falta rolada para Júnior, que chutou mascado, mas a bola desviou na defesa atleticana e subiu, obrigando João Leite a se esticar para mandar por cima do travessão. O Atlético, que não vinha conseguindo sair nos contra-ataques, enfim encaixou um aos 27: Cerezo lançou Reinaldo na ponta-direita, nas costas de Júnior. O centroavante desceu na diagonal até a área, mas Raul fechou bem o canto e o chute rasteiro foi para fora.

O Atlético seguia pressionando a arbitragem. Aos 30, Luisinho reclamou de uma falta de Tita e José de Assis Aragão apitou, mas o zagueiro atleticano continuou chiando a tal ponto que o árbitro acabou marcando uma infração técnica do defensor atleticano. Aos 36, foi a vez de Nunes levar o amarelo ao acertar o zagueiro Luisinho. Embora o Fla já tivesse mais volume de jogo, as chances se sucediam de um lado e de outro. Até o desempate os 41 minutos.

Luisinho fez falta em Tita na ponta direita, perto da bandeirinha de escanteio. Toninho levantou para a área, João Leite espalmou e Orlando despachou. Mas a bola sobrou para Júnior, que tentou um primeiro chute, bloqueado por Palhinha. A sobra voltou para o lateral, que bateu para o gol de pé direito. No meio do caminho, a bola encontra Zico, que apara e, mesmo quase caindo, consegue tocar para as redes. O êxtase voltava ao Maracanã.

Mesmo longe das condições físicas ideais e perseguido bem de perto pela marcação atleticana, o camisa 10 rubro-negro era decisivo pela segunda vez no jogo. Na saída de bola, o Atlético ainda tentou novo empate relâmpago com Palhinha. Atenta desta vez, a defesa rubro-negra rechaçou. E ao apito final do primeiro tempo, Chicão pegou a bola e a arremessou contra Júnior, iniciando ali um bate-boca com o lateral enquanto os times deixavam o campo.

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No intervalo, nos vestiários, o técnico Cláudio Coutinho recebeu um bilhete e o entregou a Adílio, pedindo para que o meia lesse. Mesmo em voz baixa, podia ser ouvido pelos demais jogadores. Dizia a mensagem: “Companheiros, estou bem, torcendo de fora. Vamos pra cabeça. Assinado, Rondinelli”. Era a senha para que o Flamengo não deixasse de lutar um só instante, honrasse a camisa e a enorme massa de gente que o assistia no Maracanã.

A 45 MINUTOS DO TÍTULO

O entrevero entre Júnior e Chicão seguiu na volta do intervalo: o lateral cometeu falta no volante já no campo de ataque e, após ser provocado, tentou acertar um tapa na cabeça do atleticano. Aragão mostrou o amarelo ao rubro-negro, o segundo do time. Pouco depois, o Fla teve grande chance de ampliar o placar: Tita abriu o jogo para Júlio César na esquerda e o ponteiro cruzou de primeira para Nunes, que chegou atrasado por milímetros.

O Flamengo voltou à carga aos oito minutos, quando Zico recebeu de Tita e entrou driblando em velocidade pela defesa do Atlético, parado apenas com falta por Luisinho quase na risca da grande área. Na cobrança, a bola acertou a barreira, que andou muito e forçou Aragão a mandar voltar. Cerezo protestou e o árbitro chegou a botar a mão no bolso para puxar o cartão (que seria o vermelho). Mas foi Reinaldo quem acabou levando o amarelo.

O Atlético, que já havia trocado o lateral Orlando por Silvestre no intervalo, teve de gastar sua segunda alteração aos dez minutos da etapa final, quando Luisinho saiu lesionado para dar lugar ao lateral Geraldo (Silvestre passou para a zaga). Logo depois, numa bola esticada pela direita do ataque atleticano que Marinho protegeu para a saída de Raul, Reinaldo sentiu um estiramento no músculo posterior da perna coxa direita.

A torcida rubro-negra gritava “bichado”, e o jogo parecia se colocar à feição do Flamengo. Cerezo quase marcou contra ao tentar abafar um chute de Marinho, defendido no reflexo por João Leite. Na ponta-esquerda, Júlio César era duramente marcado por Geraldo. O lateral atleticano chegou a atingir o rubro-negro com um carrinho por trás sem, no entanto, levar nem o amarelo. Logo depois, Nunes perdeu chance incrível, chutando mal após passe de Júnior.

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Aos 16 minutos, porém, a defesa rubro-negra cometeu um erro fatal. Manguito saiu da área para dar combate a Palhinha e deixou Marinho sozinho. A bola chegou a Éder, que cruzou alto. Marinho não alcançou, e Reinaldo, que se infiltrara nas costas da zaga, apareceu desmarcado para finalizar de primeira. A bola entrou chorando no gol de Raul. O empate atleticano, que parecia improvável, vinha com um jogador que fazia número em campo.

O Flamengo mexe no time: Carpegiani dá lugar a Adílio. O Atlético ganhava confiança. Mas um impedimento mal marcado de Reinaldo na ponta direita degringolaria numa enorme confusão. O atacante atleticano parou na frente da bola para impedir a cobrança e ainda a chutou. Aragão prontamente expulsou o camisa 9. Procópio e todo o banco atleticano entraram em campo, paralisando o jogo por mais de seis minutos. O técnico mineiro também seria expulso.

Reinaldo cai em campo – sente o músculo, faz cera, xinga a mãe do juiz. José de Assis Aragão revida: ‘Quebro a cara desse moleque. Tá expulso!’”, relatou a crônica do jogo publicada pela revista Placar. O fato é que a longa pausa, esfriando o jogo até quase os 30 minutos do segundo tempo, beneficiava o Atlético, que seria campeão com aquele empate. O Fla buscava forças para reagir. Adílio entrara bem no lugar de Carpegiani. E Júlio César crescia.

O ponteiro incomodava a defesa atleticana com seus dribles rápidos. E ao receber um pontapé de Palhinha, provocaria uma falta perigosa próxima à área. Adílio, por sua vez, abriria uma bola na direita para Toninho cruzar na cabeça de Zico, que tocou por cima. Mas logo a torcida voltaria a se inflamar. Aos 36, Osmar sairia jogando outra vez até o meio-campo. Sua tentativa de lançar Pedrinho, porém, foi interceptada por Júnior, que entregou a Andrade.

O camisa 8 então lançou a bola para Nunes, novamente no espaço deixado pelo beque atleticano. O atacante rubro-negro disparou em velocidade e tentou alçar a bola para a área, mas ela bateu no peito de Silvestre e voltou para o João Danado. Na risca lateral da área, o centroavante parou na frente do marcador, relembrando seus tempos de ponta. Sob as traves, João Leite gritava: “Quebra ele, Silvestre!”, mas o beque continuou parado.

Instintivamente, Nunes deu o drible para dentro, arrancou pela linha de fundo e, quando o arqueiro atleticano caiu para fechar o canto, o centroavante bateu à meia altura, estufando as redes. Um gol de raça, de ousadia, de inspiração. Um dos mais memoráveis da história do estádio e dos Campeonatos Brasileiros. E que fez explodir de vez a torcida rubro-negra, até então apoiando, empurrando o time, mas um tanto aflita, roendo as unhas.

Aos 39, para reforçar a marcação, Júlio César deixaria o campo dando lugar ao lateral Carlos Alberto, que entraria no meio-campo para conter Cerezo. Agora era o Flamengo que se fechava e explorava os contra-ataques puxados por Zico. O Atlético, à essa altura, já se deixava vencer pelos nervos: Osmar foi driblado por Andrade e cometeu falta. Quando o camisa 8 se levantava, de passagem, o zagueiro atleticano acertou um soco em seu rosto.

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Depois, Tita sofreu falta perto do bico da área pelo lado direito, Chicão pegou a bola e jogou na cabeça de Aragão. Com o Flamengo pedindo desesperadamente o fim do jogo, o árbitro esticava para repor o tempo perdido com a paralisação após a expulsão de Reinaldo. Já eram 48 minutos quando Tita recebeu um passe na meia esquerda e começou a fazer embaixadinhas, até levar um pontapé de um descontrolado Chicão, expulso imediatamente.

Logo depois seria a vez de Palhinha, que encostou no árbitro e disse-lhe alguma coisa. Os dois discutiram, e o meia-atacante atleticano também recebeu o vermelho. O Flamengo rodava a bola de pé em pé aguardando o apito final, mas ainda levaria um susto: Carlos Alberto recuou para Manguito, que teve a carteira batida por Pedrinho. O ponta arrancou num último gás e passou até mesmo pelo goleiro Raul, que já deixava a área.

Quando Pedrinho preparou a perna para armar o chute, Andrade apareceu na hora exata para bloqueá-lo. E, para o alívio dos rubro-negros, aquele seria o último lance da partida, encerrada aos 51 minutos. A multidão que já aguardava o fim do jogo à beira do campo rapidamente invadiu o gramado, levando Coutinho e os jogadores nos ombros. Alguns torcedores também pagavam promessas, cruzando ajoelhados toda a extensão do campo.

CAMPEÃO DO BRASIL

Vestindo faixa de campeão, o paraibano Herontino Colombo, 31 anos, era um deles, um símbolo da massa: “Moço, nem sei como vou pagar as prestações da passagem. Ganhei uma grana no bicho e dei a entrada. Me mandei para cá. Nunca tinha botado os pés no Maracanã. Um troço me dizia para eu vir ao Rio, que eu ia ver o Flamengo campeão. Como vou fazer para pagar? Sei lá! Não é hora de pensar nisso”, declarou à Placar.

Herói da final e nordestino como o torcedor, Nunes falava sobre a reação ao gol do título: “Senti a perna tremer. E depois a frustração: eu queria era estar na geral, cair nos braços daquele monte de gente, rolar por cima do povão. Mas fiquei com medo na hora H. Para mim, o jogo terminou ali. Foi por isso que eu fiquei dançando, meio ausente: senti o estádio dentro da minha camisa, como se cada pessoa fosse um Nunes e eu fosse cada um daqueles torcedores”.

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Zico era outro exemplo de raça: “Durante o jogo pensei em meu problema muscular, mas não tive medo. Uma decisão é diferente. Joguei, dividi e me movimentei com todas as minhas forças. Se tivesse que arrebentar o músculo não tinha importância ficar dois meses parado. Esse título teria que ser nosso. Fizemos por merecer”, declarou o camisa 10, que tratou de incentivar o time em todos os momentos: “Nunca gritei tanto num jogo como nessa decisão”.

Naquele instante, cada torcedor se sentia consagrado como Nunes, imortalizado como Zico, redimido como Cláudio Coutinho. Se sentia tão campeão do Brasil como todo aquele esquadrão rubro-negro, que dali partiria para conquistar a América e o mundo no ano seguinte, e levantando ainda três Brasileirões em quatro anos. Se sentia digno da eternidade.

*Imagem destacada no post e nas redes sociais: Reprodução / Nunes decide e parte para o abraço: o Fla, enfim, era campeão do Brasil.


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