“Is this the real life? Is just a fantasy?”, se questionava o moço da rapsódia boêmia, em meio ao terremoto em sua vida. E no terremoto diário de todos nós, nos pegamos numa confusão em que os fantasmas nos parecem de osso e carne e os vilões reais nos parecem folclore.
O turbilhão nos derruba, os olhos tremem, não distinguimos o que é plástico, o que é aço, o que nem é matéria, o fake do fake do fake, o que é lama, o que é justo, o que tem peso e medida.
Como o irmão de um amigo meu, bom moço, mas chato de mania estranha: vê filme de fantasia a buscar incongruências: “ah mas isso é impossível”, “ah mas o peso desse carro”, “ah mas até aparece”, “ah não existe isso”… Mas se o filme é de fantasia, que exercício inútil é este? Talvez para encontrar sagacidade em si mesmo, ele e tantos outros colocam lupa de detetive para encontrar as provas, provando que estúpido é o Spielberg, é a Marvel, é o James Bond.
Ele não. Ele é o homem que enxergou a verdade. A verdade dentro da fantasia que nunca se propôs a ser real.
Ele se sente gênio: “esses nunca me enganarão!”, brada exultante, feliz de si — e talvez nunca venha a perceber que talvez seja o mais estúpido entre todos os estúpidos logicamente possíveis.
E aquele poeta da rapsódia também cantava “oh life is cruel, life is a bitch, life is real, so real”, cantava assim tão triste que chega a nos doer os ouvidos, pois se há algo que nem sempre nos damos conta é da realidade: o mundo vivo e pesadão, o mundo das tragédias de Brumadinho e Mariana, o mundo do Brasil desgovernado, o mundo de vilões no poder, o mundo de tanta pobreza e manipulação.
O que é real? Há horas em que a sensação é só viver num pesadelo, que nenhuma fantasia conseguiria emular — e já não há farol para iluminar, desvendar: pegos no deslizamento, nada mais importa, já estamos enlameados e lunáticos. Tudo nos parece indistinguível.
O Homem-Aranha é tão real quanto nossos políticos.
As milícias são tão irreais quanto o Parque Jurássico.
Tudo é o mesmo surreal, tudo — a fantasia e a vida — num mesmo desentendimento.
O Flamengo que eu quero vive ali, entre tudo isso e fora disso tudo. Futebol é fantasia. O gol é real. Futebol é pra trazer diversão, não para causar úlcera.
Há torcedor que vai desmedido, dando uma importância drástica que não cabe ao futebol. “Calma, garoto”, isso tudo é fantasia, é jogo, lúdico. Perdeu? Que chato, mas não pule das marquises, não se torne um chato obsessivo… não procure pela lógica onde deveria procurar pelo recreativo, pelo riso — ou você perderá o que há de melhor dessa festa maneira.
O Flamengo que eu quero é antes de tudo o momento de paz e devaneio. Quer vençamos, quer não vençamos, passamos como o rio. Mais vale saber passar silenciosamente. E sem desassossegos grandes.
Rindo, apenas, de qualquer modo, sob qualquer céu.
Que a cada jogo, sejamos desconectados e transportados para uma aventura cósmica de outra dimensão, de jogadas impossíveis, de dribles improváveis, de bicicletas inesperadas, categoricamente inesperadas.
Que os atletas em campo sejam super-heróis uniformizados, com seus chutes atômicos e reflexos bestiais, pulos antigravitacionais, resistência e autorregeneração; que nos entreguem o dinossauro revivido, o Flash velocista mais rápido que o som, o gol além da imaginação.
Apenas isso. Deveríamos nem nos importar com títulos. Esbravejar, jamais! Sofrer, jamais! Que fiquemos em bela sintonia e paz, sem corneta de Ragnarok, sem ameaça de nada.
Seja como for, do jeito que for, meu Flamengo é meu pão, meu circo.
Depois, o juiz apita. A magia acaba. A realidade cospe na nossa cara.
Novamente nos percebemos aqui, neste Brasil. O amargo de tudo volta aos olhos, secos, de pupilas escancaradas.
“Is this the real life? Is just a fantasy?”, nos questionamos, em meio a toda lama desta vida. Numa confusão em que os fantasmas nos parecem de osso e carne e os vilões, reais, tão somente folclore.
Paulista de Osasco, nascido em 1974, casado. Formado em Letras na USP, dramaturgo, profissional da área multimídia e servidor público federal. Rubro-negro desde 1980.