Eu comecei a acompanhar o Flamengo de forma fanática, primeiro por causa da política e só depois, por causa do futebol. Já assistia aos jogos, torcia e sofria, mas foi só com o descalabro da gestão de Patrícia Amorim, e o nascimento da "Chapa Fla Campeão do Mundo" (posteriormente conhecida como Chapa Azul), que passei a enxergar que as coisas podiam ser diferentes.
A partir daquele momento, passei a defender com unhas e dentes a revolução feita no Flamengo, uma revolução que não encontra paralelo na história deste país. Toda vez que alguém soltava um "O Flamengo não é banco", eu ouvia um sermão sobre como precisávamos nos organizar. Eu me via como um guardião daquilo que estava sendo feito no clube. E agora esse legado está em jogo.
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Nesta segunda-feira, 9 de dezembro de 2025, os sócios do Flamengo escolheram o presidente do Flamengo para o próximo triênio. Entre os dois candidatos com mais chances, temos um que não chega a me despertar amores, Luiz Eduardo Baptista, mas que tem apoio de Zico e muitos integrantes daquela Chapa Azul de 2012 que elegeu Bandeira de Mello.
O outro, Rodrigo Dunshee, representava a continuidade de um projeto que colocava em risco tudo pelo qual lutamos.
Felizmente venceu Luiz Eduardo Baptista, o Bap, e seu vice Flavio Willeman, que como vice-presidente do Jurídoco conseguiu façanhas incríveis entre 2013 e 2018.
E o risco ao que me referi ao falar de Dunshee era real e vocês entenderão os motivos a seguir.
Antes de mais nada, é preciso dar crédito aos criticados. É verdade que a atual diretoria é responsável pelo alavancamento das receitas do clube. Muito disso se deve ao aumento de valores provenientes do desempenho desportivo iniciado em 2019, que ampliou receitas de Sócio Torcedor e MatchDay.
Fora isso, foi premiado um modelo arrojado no qual a diretoria apostou desde o início. Mas até mesmo isso teve seu "Q" de sorte. Afinal, o ano mágico só foi possível por uma sucessão de falhas da diretoria.
Existe uma realidade em que o Flamengo não contratou o Gabigol, mas o Pablo. Não contratou o Rodrigo Caio, mas o Dedé. E nunca teve Jorge Jesus, já que os preferidos da diretoria foi Abel Braga.
2019 foi um delicioso acidente que até hoje sustenta o Flamengo com o faturamento que tem.
Entretanto, faturamento não é suficiente para fazer um clube funcionar. É preciso observar como esse dinheiro é investido. E, nesse quesito, esta diretoria que está de malas prontas é um desastre completo.
É bem verdade que boa parte do orçamento bilionário nem chega às mãos do Flamengo. Muito disso se perde nas mãos da FERJ, nos custos operacionais do Maracanã e nas premiações por campeonato, que, via de regra, são majoritariamente distribuídas como premiação aos jogadores.
Mas, aquilo que ficou em nossas mãos, foi torrado assim:
Inflação salarial
Quando Gabigol foi contratado em definitivo, o valor de seu salário causou espanto. Ele vinha ganhando mais de um milhão de reais por mês. Mas estávamos falando do cara que acabara de decidir a primeira Libertadores em 30 anos para o clube, e nós podíamos pagar sem grandes problemas. Então, estava ok.
Acontece que, a partir daí, o "milhão" passou a ser a unidade básica de valor no Flamengo. Qualquer jogador mediano chega ao clube beirando esse salário. Vou fazer uma força para ignorar minha opinião pessoal sobre os jogadores citados, mas vamos refletir.
Segundo matéria, o volante Allan ganha hoje no Flamengo um milhão de reais, enquanto ganhava R$ 400 mil no seu clube anterior. Ignoremos a completa falta de capacidade do volante em praticar o esporte futebol. É razoável que, para trocar o Atlético-MG pelo Flamengo, um jogador precise ter seu salário quase triplicado?
Continuemos. Luiz Araújo caiu nas graças de grande parte da torcida (eu não estou entre eles). Mas repare: o jogador veio da MLS e, segundo matérias da época, também chegou com salário de um milhão. Perceba que, recém-chegados, sem nenhuma história ou comprovação no clube (ou ao menos um esforço para convencê-los a vir da Europa), eles chegam ao Flamengo com salário-base de um milhão.
E não para por aí. Nico De La Cruz, que esteve bastante indisponível este ano, veio do River Plate ganhando, mais uma vez segundo a imprensa, pelo menos R$ 1,2 milhão. Perceba que, independentemente do nível do jogador, se você gosta ou não dele, ou até mesmo da posição... Qualquer um chega ao Flamengo com um milhãozinho garantido.
E aí nós temos outra vertente do problema: quanto pagar com renovações quando os novatos estão recebendo isso?
Não se engane, parte da saída de Gabigol do Flamengo se deve a isso. Afinal, aquele que outrora recebeu um salário astronômico por ter sido quem nos deu a Libertadores de 2019, hoje ganha um valor próximo ao de jogadores que mal entram em campo.
E aí você precisa renovar com o Bruno Henrique em valores que ele talvez não devesse ganhar, ou perdê-lo. Decidimos manter. Já com Gabi, optamos por perder. Nós inflacionamos nossa folha salarial com jogadores que não justificavam isso. E, por esse motivo, boa parte do nosso faturamento está comprometida com quem não entrega. Mas não para por aí.
Crise de expectativa
Desde o início dessa gestão, o Flamengo contratou sem pena. Abriu os cofres para Arrascaeta, Gabigol, Pedro. Mas eu te pergunto: quando foi a última vez que você olhou para uma contratação do Flamengo e pensou: "Custou barato"? E não porque ele necessariamente foi barato, mas porque entregou muito. Veja bem, todos esses que citei foram baratos porque se pagaram. Mas, desde então, essa não tem sido a regra no Flamengo.
Quando muito, ficamos no "breakeven", onde, no máximo, o jogador vale o que custa. Mas a grande maioria deles custou mais do que entregou. Vejamos. Ayrton Lucas, segundo valores do Transfermarkt, tinha valor de mercado de 6 milhões de euros e foi contratado por 7. Isso depois de chegar ao Flamengo valendo 4,5 milhões e se valorizar. Foi útil em alguns momentos e hoje é odiado por boa parte da torcida. Valeu esse preço?
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Os supracitados de salário astronômico, Allan (8 milhões de euros), Luiz Araújo (9 milhões de euros) e De La Cruz (14,5 milhões de euros à vista), em algum momento justificaram esse valor? Mesmo que vocês gostem do futebol apresentado por eles, é suficiente para justificar esse valor? E a lista não para por aí. Viña custou 8 milhões de euros e está longe de ser um mau jogador. Mas, como disse, breakeven.
E, quando eles entregam, é lucro, porque a maior parte deles não entrega. Isso não significa que não virão a entregar, mas significa que, via de regra, é dinheiro queimado.
Se tornando um time comum
No fim, a junção dos dois anteriores foi transformando o Flamengo em um time comum. Um time que não é ruim, que consegue competir, mas que gasta muito mais para isso do que seus adversários. E o que resta?
Resta reclamar das malvadas SAFs que, segundo Landim, dificultaram tudo, ignorando, por exemplo, que, apesar do gasto do Botafogo acima de suas capacidades, isso foi apenas um pouco acima do que nós mesmos gastamos, com o agravante de que já tínhamos um elenco com Gerson, Gabigol, Bruno Henrique, Léo Pereira, Arrascaeta e um grande elenco.
E essa transformação do Flamengo em um time comum não para por aí. Será sentida por pelo menos mais um ou dois anos. No início do ano, eu escrevi aqui que "acabou o dinheiro", demonstrando como a contratação a prazo de jogadores que não vingaram, junto com o pagamento à vista de De La Cruz, tinha deixado o Flamengo sem poder de investimento.
Parecia que eu estava errado quando, no desespero, Landim e sua turma foram ao mercado trazer Alcaraz e Plata. Acontece que esse movimento comprometeu ainda mais as contas dos próximos anos.
Dessa forma, o Flamengo terá de pagar, em parcelas de jogadores, mais do que havia orçado para contratações neste ano. Ou seja, é muito provável que não haja grandes reforços nos próximos anos, a não ser que sejam vendidos jogadores, mas que, obviamente, terão de ser repostos.
Quando se viu diante da ideia de mais um ano fracassado, dessa vez com a eleição batendo à porta, a diretoria vendeu o futuro do Flamengo.
Temo pelo que mais eles poderiam vender para se perpetuar no poder. Por isso, nesta segunda-feira o Flamengo teve uma escolha a fazer. Teve de decidir se arriscar a voltar a um passado sombrio ou se continuaria a seguir os passos da seriedade, responsabilidade e evolução ao tornar Bap o novo presidente do Flamengo.
Renato Veltri é advogado, formado pela UFRJ em 2019 e flamenguista formado por sua irmã, Vanessa, na final da Copa do Brasil de 2006. Twitter: @veltri_renato.