O Flamengo no estado da natureza - saudades do tapa na bola

04/03/2018, 16:33

O Flamengo começou 2018 em 28 de fevereiro - disso não há como ter dúvidas. E, infelizmente, depois de dois meses de vitórias pífias, de uma conquista-placebo (Taça Guanabara) e daquele entusiasmo meio “empolgação com o valor do tiquete-refeição” que é a conquista da Copa SP (ainda que deva, sim, ser comemorada), o que tivemos foi uma gigantesca frustração. No meu entender e no de qualquer rubro-negro com alguma decência intelectual é absolutamente inacreditável que, depois de três anos passando pano e dizendo “ano que vem vai”, o time do Flamengo tenha uma estreia absolutamente ridícula como o empate contra o River.

O ocorrido na noite de quarta-feira me remete a Millor Fernandes que, maldosamente, dizia que certo ex-prefeito do Rio “desmoralizou a honestidade”. Pois o Flamengo conseguiu a façanha de desmoralizar o empate - algo que seria aceitável contra um time grande como o River (que vinha de SEIS DERROTAS FORA DE CASA, NUM RECORDE HISTÓRICO). Só que estará mentindo o rubro-negro que disser que ficaria mais indignado com uma derrota. Não. Não há como ver este empate de outra forma a não ser como derrota. O empate foi desmoralizado, da forma com que o Flamengo costuma empatar.

Como quase todos os meus irmãos em fé Flamenga, fiquei refletindo algum tempo antes de conseguir dormir. Por que diabos temos um time com estrelas recebidas com multidões em aeroportos mas estas mesmas estrelas não nos levam a parte alguma?

Me lembrei de um lance - infelizmente não consegui lembrar com qual de nossos jogadores. Talvez Dourado, talvez Rodinei. Foi pela direita do ataque, perto da lateral. Um choque entre dois adversários, o jogador do River sai com a bola, de pé. O nosso jogador, no chão, esperando marcarem uma falta. Houve repetição, meio automática, do lance. E deu para ver que não houve falta, e sim uma prevalência do mais forte sobre o mais fraco. Árbitro? Conmebol? Por que reclamar disso?

Percebi então que o Flamengo não entendeu que a Taça Libertadores da América é um mundo em estado de natureza, como definia o inglês Thomas Hobbes. Em sua obra-prima Leviatã, Hobbes descreve o estado da natureza como aquele em que todos os homens podem tudo, e as coisas se definem mediante a força de cada um. Neste estado, o mais fraco é naturalmente subjugado. Para evitar isso, Hobbes defende um ordenamento jurídico e sociedade fortes, um Estado idem, com poderes mediadores.

“O homem é o lobo do próprio homem”, diz Hobbes. Nesse cenário, não há coisas divididas ou compartilhadas. A força é usada para a conquista. E não há, em tese, regras para impedir que isso aconteça. Por isso, num estágio mais avançado civilizatório, haveria uma regulação para manter o respeito e a ordem. Faz-se então um contrato social no qual o poder em tese sem limites das pessoas é contido.

O Flamengo está acostumado a viver nessa civilização, onde Vasco, Botafogo e Fluminense precisam estar unidos contra o Leviatá da Gávea. Nos últimos anos, apesar dos insucessos, até no Brasileiro é possível dizer que o Flamengo se impõe e que vive dentro de um contrato “harmless”. Mas ao sair para a Libertadores, para este mundo diferente, me parece que não temos, simplesmente, os guerreiros pertinentes a ele - algo que se viu na versão pocket da Libertadores, a Sul-Americana.

Vocês lembram do discurso de que “ah, em pontos corridos todo jogo é uma final”. É curioso, pois mesmo isso sendo tecnicamente provado, é normal que nas dez primeiras rodadas os jogos tenham a vibração de uma pelada de aterro, com raras exceções. Pois esta é uma frase que deveria servir para a Libertadores - é mais do que óbvio que todo jogo é uma final, é jogado como final, é jogado com empurrões, barbas por fazer e cotoveladas, é jogado com terror, com carranca. Quem joga Libertadores precisa sentir o hálito do medo vindo de seu adversário.

Aqui não cabe discutir QUALIDADE de jogadores, por mais que nós estejamos tendo um certo probleminha de laterais - e que a entrada do Arão estreando em 2018 num jogo de Libertadores não seja realmente uma coisa saudável mentalmente. “Não tive opção”,, disse o técnico. Teve sim: quando montou o banco de reservas.

O que questiono aqui é o que já se discute nas redes sociais desde o fim da partida: a sensação de que o espírito Flamengo abandonou este corpo há anos, e o que temos é um corpo com morte cerebral, um corpo que continua funcionando perfeitamente, com saúde, mas sem a alma.

Nesses momentos, vale lembrar a frase dita por Wayne Kyle, um dos personagens de American Sniper: “Há três tipos de pessoas neste mundo: ovelhas, lobos e cães pastores. Algumas pessoas preferem acreditar que o mal não existe no mundo, e se algum dia o mal bate-lhes à porta, não sabem como se proteger. Essas são as ovelhas. Então você tem predadores, que usam a violência para se alimentar dos mais fracos. Eles são os lobos. E há os que têm uma necessidade atávica de proteger o rebanho. Estes homens são a raça rara que vive para confrontar o lobo. Eles são os cães pastores.”

O Flamengo não tem lobos e nem cães pastores.

Vejamos: Diego, Everton Ribeiro, Réver, são maus jogadores? Longe disso. Mas muito longe mesmo. A questão é que em suas carreiras não foram pastores. Nem lobos. Nosso camisa 10, vocês lembram, jogou o malogrado Pré-Olímpico de 2004, como PRINCIPAL jogador. Perdemos o último jogo para o Paraguai por 1 a 0, gol de Vaca.

Não há registros fotográficos ou de vídeo na internet. Mas o jovem Diego, um grande jogador, de muito talento, ao fim do jogo mostrava um abatimento incomum, um medo estampado no rosto. Meses depois, em um jogo não decisivo, ele estava fazendo gols pelo Wolfsburg quase do meio de campo.

O medo sobra neste Flamengo de hoje - mas não apenas o medo de perder, ou de ficar sem o salário, ou de ser apedrejado pela torcida. Em cada dividida, em cada investida ao ataque, em cada vez que a defesa se movimenta para conter o golpe do adversário. É um medo que parece físico, como o medo de um cachorro bravo ou de um abismo.

E há culpados? Difícil apontar. As causas, não sei. Mas é fato que há uma ausência absurda de Flamengo nisso tudo. É quase como se a nossa verdade fosse representada pelas arquibancadas vazias do Engenhão.

Onde vejo Flamengo?

A descrição eu coloco abaixo, escrita pelo maior escritor rubro-negro da atualidade, Mauricio Neves de Jesus, autor do fundamental “1981 - o primeiro ano do resto de nossas vidas”.
E me despeço por aqui, pois não sou digno de escrever nada depois desta crônica.

https://www.travessa.com.br/1981-o-primeiro-ano-do-resto-de-nossas-vidas/artigo/9118fa7f-ed11-4410-9eb8-fad0f2a90f03

Tapa na bola – Por Mauricio Neves de Jesus

Esta não é uma história de ficção. Os personagens são humanos e reais embora hoje não se possa mais disfarçar: alguns deles chegaram à fronteira da divindade e outros a ultrapassaram. Se o futebol é uma religião, o Flamengo tem seus deuses: Valido, do Milagre. Rondinelli, da Raça. Zico, da Plenitude. E Júnior, dos Mil Jogos, a quem pertence esta história que eu vou contar.

Corria o ano de 1982, dia vinte e três de setembro. Mais de cem mil pessoas no Maracanã. Decisão, Flamengo e Vasco a todo risco.O jogo poderia entrar pela prorrogação e daí para os pênaltis, mas todos sentíamos que aquela noite não acabaria jamais. Para nós, valia o pentacampeonato da Taça Guanabara. Para eles, o desejo de vencer os campeões mundiais.

Último minuto de jogo, zero a zero. Os radialistas falam em tempo extra e cogitam os possíveis cobradores dos pênaltis. Zico recolhe uma bola na intermediária e estica na extrema esquerda a Adilio.Torto, ele carrega a bola colada ao pé até a área do Vasco, passa pelo zagueiro sem mudar o traçado da corrida e, do bico esquerdo da pequena área, desliza a bola entre o poste e Mazarópi. Gol. Gol que fez explodir a arquibancada à esquerda das cabines de rádio, que faz abraços flamengos, que desmorona a pretensão vascaína de dobrar o Campeão Mundial de Futebol. Nunes entra na meta recém vazada e solta uma bomba, endossando o gol de Adílio.

O jogo recomeça e os adversários rondam a área rubro-negra, mas cometem falta de ataque.Era o suficiente para acabar o jogo, uma falta para o Flamengo, que esperaria o apito final com a bola passando de pé em pé. Porém, na continuidade do lance que originou a falta, a defesa rubro-negra afastou o perigo da área com um chutão.

Zico e Júnior estavam junto de Cantarele, na entrada da área do Flamengo, esperando o retorno da bola.E a bola chutada do campo do Vasco passou por Zico, Júnior e Cantarele. Com a vantagem rubro-negra, era de se esperar que nenhum deles saísse atrás da bola. A pressa era inimiga. Mas a bola que passou pelos jogadores tomou o rumo da meta, abandonada por Cantarele, que estava na entrada da área junto aos demais.

Então, como se a bola estivesse em jogo ou, mais, como se a bola em direção ao gol rubro-negro fosse uma bomba ameaçando o pavilhão flamengo, como se a meta fosse uma reserva de emoções e sentimentos a ser guardada a ferro e fogo, Zico e Júnior correram desesperados atrás da bola que saltava em direção à rede. A um passo do gol, vigiado por Zico, Júnior deu um tapa na bola para impedir que ela vencesse a linha.

O jogo estava parado, o título estava assegurado, mas Zico, Júnior e todo aquele Flamengo, todos sabiam que um jogo entre Flamengo e Vasco não dura os noventa minutos: dura por toda a vida.E eu não disse que Zico ordenou a alguém, que Júnior olhou para Cantarele e disse “corre!”.

Foram eles, os maiores de todos, os intocáveis, que do alto de sua majestade perseguiram a bola como se fossem moleques, impedindo a sua entrada em nosso gol, mantendo imaculada, absolutamente imaculada a meta flamenga. Júnior deu um tapa na bola. Um tapa na bola, provavelmente o único que deu na vida. Escrevam em seu currículo: Júnior, mil jogos pelo Flamengo e um tapa na bola, em legítima defesa do que é sagrado. Um rubro-negro à flor da pele.

Imagem destacada no post e redes sociais: Gilvan de Souza / Flamengo.


Gustavo de Almeida é jornalista desde 1993, com atuação nas áreas de Política, Cidades, Segurança Pública e Esportes. É formado em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense. Foi editor de Cidade do Jornal do Brasil, onde ganhou os prêmios Ibero-Americano de Imprensa Unicef/Agência EFE (2005) e Prêmio IGE da Fundação Lehmann (2006). Passou pela revista ISTOÉ, pelo jornal esportivo LANCE! e também pelos diários populares O DIA, A Notícia e EXTRA. Trabalhou como assessor de imprensa em campanhas de à Prefeitura do Rio e em duas campanhas para presidente de clubes de futebol. É pós-graduado (MBA) em Marketing e Comunicação Empresarial pela Universidade Veiga de Almeida. Atualmente, escreve livros como ghost-writer e faz consultorias da área de política, além de estar trabalhando em um roteiro de cinema.


 

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