Na rota de Mosul

01/08/2017, 17:16
cultura rubro-negra

 

“Então é assim que a gente vai morrer? Que morte horrível para todos nós.”

 
Desde que em 2008 a torcida do Flamengo ficou encurralada em uma quina do velho Estádio Olímpico, abandonada pela PM (que no Rio Grande do Sul é chamada de Brigada Militar) e alvo de agressões que não discriminavam idade, gênero ou condição física, a FLA RS passou a adotar algumas regras básicas de segurança.

A cada Flamengo x Grêmio marcamos um ponto de encontro. De lá a gente parte para o estádio em comboio de vans ou ônibus. Na saída, a mesma coisa, mais ou menos 1 hora depois que o jogo termina.

Antes a gente preferia ir de ônibus, porque, como somos poucos, 1 ou no máximo 2 veículos acomodam todos. A gente pedia escolta da polícia, uma viatura ia abrindo o nosso caminho.

O problema é que viaturas da PM chamam atenção da massa gremista que fica bebendo no entorno do estádio e gera aglomeração quando chegamos.

FlaRS concentrando antes de um jogo do Flamengo. Foto: https://www.facebook.com/embaixadaflars/

 

Em 2014, nosso ônibus foi cercado, ouvimos toda a sorte de impropérios e ameaças, até que a filha de um amigo nosso, uma menina cadeirante e com necessidades especiais, foi chamada de “macaquinha aleijada”. Nosso pessoal resolveu revidar, causando grande tumulto na entrada, contido com muito custo.

Daí em diante optamos pelas vans. Muitos torcedores locais, que moram em cidades do interior ou na região metropolitana de Porto Alegre vão ao estádio nessas vans. Assim a gente consegue acessar o estádio sem despertar muita atenção, pensam que podemos ser um grupo de “colonos”, que é como os porto-alegrenses se referem pejorativamente aos gaúchos das zonas rurais.

A Arena do Grêmio, que a gente de zoeira chama de “Arena da OAS” em homenagem ao legítimo proprietário do imóvel, é um dos estádios mais bonitos que conheço. E também é um exemplo perfeito de como as coisas são difíceis no Brasil.

O estádio foi erguido nas margens de uma rodovia. Bem em frente fica uma ponte estaiada, um dos acessos à Porto Alegre cruzando as águas do Guaíba. À empreiteira competia apenas construir o estádio. As vias de acesso à rodovia, coisas, sei lá, de 200 metros, deveriam ser providenciadas pelo poder público, a prefeitura, o estado, a União, whatever...e, como um símbolo eterno da nossa crônica ineficiência, essas pequenas vias nunca foram construídas e nada indica que venham a ser um dia.

Além disso, o estádio fica praticamente dentro de uma favela. Aliás, suspeito que antes tudo ali fosse uma favela, removeram alguns barracos para abrir espaço para a cancha e deixaram os outros por ali. E não é uma favela qualquer, é daquelas bem clássicas, onde as primeiras habitações são de alvenaria, coisas de classe média baixa, mas conforme se vai entrando, as casas viram barracos improvisados.

O jogo acaba e restam duas opções aos torcedores: ficar preso em um engarrafamento interminável; se aventurar pelas ruelas e becos da favela.

Como acontece com qualquer torcida visitante, a polícia retém no estádio a torcida adversária por longos minutos. Só pode sair quem estiver completamente descaracterizado, para não despertar suspeitas.

Em 2014, Andreza, uma querida amiga com uma carreira de respeito em RH, tinha levado seu filho de 5 anos para entrar em campo como mascote. Julgou que, sendo mulher, com uma criança pequena e sem qualquer vestimenta rubro-negra, estaria a salvo de riscos maiores. Pegou um taxi na porta dos visitantes, ela e o filho. Cinco minutos depois estava no meio de um tiroteio entre grupos organizados rivais do Grêmio, o taxi alvejado por estilhaços de bala. Foi salva por uma moradora da favela, que se compadeceu do pânico que todos sofriam e abrigou em seu barraco Andreza, o filho, o taxista, todos ali até que as coisas se acalmassem.

A ironia é que o Grêmio, justiça seja feita, se desdobra para tornar nossa experiência na Arena bem agradável. Lá dentro me sinto tão seguro como se estivesse no Pentágono, com seguranças educados e totalmente isolado de qualquer contato com gremistas.

Apesar da alegria, o clima não é nunca amistoso quando o Fla é visitante. Foto: FlaRS

 

Ano passado, mais uma derrota na conta, entramos na van, fomos na frente eu e Dr. Ivan, um prestigiado obstetra da cidade, fomos escolhidos para estar ali por sermos os 2 que vestiam casacos pretos e neutros, mais fáceis de serem confundidos com roupas de gremistas. O motorista da van achou que era arriscado demais nos deixar parados no engarrafamento, resolveu se aventurar pelo meio da favela.

Uns 3 quarteirões para dentro a rua estava bloqueada por um carro. Ninguém passava. Em frente, uma birosca, dessas despretensiosas, reunia mais de 50 gremistas, julgamos que fossem de alguma organizada, ao menos cantavam as músicas.

A van parou. Meu amigo Leandro, vendedor de carros de luxo, quebrou o silêncio:

– Então é assim que a gente vai morrer? Que morte horrível para todos nós.

Ninguém sabia o que fazer. Nas janelas, cortinas fechadas. Mas se alguém olhasse pelas frestas veria o Neco e seu neto, outro mascote que tinha entrado com o time, ambos fardados com o manto.

Alguns gremistas saíram do boteco. Lentamente, um deles resolveu manobrar o carro, deixando um espaço minúsculo para a van passar, sob os olhares vigilantes e mal-encarados dos clientes do bar, todos uniformizados, embriagados e felizes pela vitória. Conseguimos avançar, lentamente, em silêncio, com muito medo.

Lembrei de tudo isso vendo os vídeos do jogo em São Januário. A torcida do Flamengo, disseram, ficou mais de 2 horas confinada lá dentro. O tumulto todos viram e reviram, não preciso me alongar sobre ele.

Porém, o que mais me chocou não foi o tumulto em si. Quando essas coisas acontecem sempre aparece gente para lembrar que os envolvidos “não são torcedores, são vândalos” ou “é uma minoria, que prejudica os torcedores de bem”.

Só que enquanto aquela correria provocada pelas bombas atiradas pela polícia abria clarões imensos na arquibancada para tentar tirar os jogadores do gramado, os milhares que ainda estavam no estádio e que não brigavam, apenas assistiam, gritavam em uníssono “Urubu c...., quero ver sair do caldeirão” ou “Uh, vai morrer! ”.

Não eram alguns. Eram todos, ou quase todos. Em resumo: alguns brigavam e os outros incentivavam e inflamavam o clima de horror.

Por que digo isso? Para execrar gremistas e vascaínos, meus principais rivais? Não, claro que não. Fazemos o mesmo no nosso lado. Cantamos a mesma coisa. Ameaçamos nossos adversários. Lamentamos que o GEPE “trate bem” os que nos visitam, embora esses não tenham esse registro de bons tratamentos.

Infelizmente, somos todos, todos mesmo, sem exceção, contribuintes dessa cultura de agressividade, violência extrema, risco permanente que permeia o ambiente dos estádios. Ninguém parece disposto a recuar a ponto de celebrar a tolerância com o rival. A intimidação é cult.

Ir a um jogo, principalmente na condição de visitante, coisa que por razões geográficas faço com habitualidade, é estar sempre a caminho de Mossul, rezando para não ser alvo de algum jihadista.

Não escrevi esse texto na esperança de mudar algo, de sugerir providências, de acreditar em dias menos sofridos. Escrevi apenas para desabafar e lamentar. E, quem sabe, para mostrar aos responsáveis pela gestão disso tudo que nada do que fazem funciona. Não sei se fazer diferente (por exemplo, acabar com cotas de visitantes) seria melhor. Só sei que piora a cada ano. E nada indica que vá melhorar.

 
Walter Monteiro é advogado com MBA em Administração. Membro das Comissões de Finanças do Conselho Deliberativo e do Conselho de Administração do Clube de Regatas do Flamengo. Escreve sobre as finanças do clube desde 2009, em diferentes espaços.


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