Ninguém sabe ao certo quando ele apareceu. Aliás, nem ele. Muito tempo depois, perguntado, disse que estava caminhando pela rua e viu algumas pessoas de camisa do Flamengo conversando na porta do bar. Resolveu entrar e descobriu que ali passava o jogo. No jogo seguinte, já veio com o Manto. Não era um Manto último tipo, com câmbio automático, câmara de ré, central multimídia, mas ainda assim era um Manto, com alguns anos de fabricação, aliás não sei nem se era um Manto 0km ou seminovo, só sei que era um Manto porque eu o vi vestindo muitas vezes.
Ele chegava sempre com a bola rolando, mesmo naqueles jogos que começam depois da novela. Quando estava vazio, sentava na frente, nas mesas mais perto da TV. Quando estava mais cheio, sentava em qualquer lugar, mas sempre sozinho, não conhecia ninguém. Mas aos poucos a gente foi percebendo a presença dele, porque ele estava sempre mais alegre do que a gente, muito embora a gente tivesse bebido litros de cerveja, ele sempre ria mais, a gente xingava, ele sorria, a gente ficava puto, ele sorria, o Flamengo levava gol, bom, ele não sorria, mas também não fazia discursos ou apontava culpados.
Um dia ele chegou e no minuto seguinte o Flamengo fez um gol. Ambiente de torcida é assim, a melhor coisa do futebol é abraçar todo mundo, aquele abraço que a gente às vezes não dá nem no pai ou no filho, mas dá com gosto naquela pessoa que você nunca viu. Como ele é pequenino, o Palácio pegou ele no colo, começou a gritar “porra, você é o nosso talismã, você é o talismã”, ele adorou aquela intimidade, dali em diante passou a ser o Talismã, em torcida é assim também, quase ninguém tem nome, o Palácio também não se chama Palácio, o Talismã é claro que não se chama assim, mas não tem ninguém que saiba o nome dele -- bom, eu demorei para descobrir.
A gente aos poucos foi sabendo da vida dele... tava na cara que ele não era abastado, mas a gente quis saber mais, quem sabe, não se deve julgar ninguém pela aparência. Ele sobrevive vendendo churrasquinhos no espeto na porta de um hospital público, daqueles hospitais que a TV adora ir lá filmar os pacientes moribundos nas filas intermináveis. Vejam, ele não vende churrasquinho na porta do Beira-Rio ou do Teatro Opinião, vende na porta de um hospital, amenizando o sofrimento dos ainda mais sofridos que ele.
A gente descobriu que ele não tinha TV. Um amigo tinha uma TV usada, resolveu presenteá-lo, perguntou o endereço, chegando lá não entendeu porra nenhuma, era um estacionamento, ligou para conferir, o Talismã mandou o amigo andar até os fundos, tinha uma espécie de barraco em PVC ou coisa parecida, o Talismã mora ali, sozinho, na companhia dos seus apetrechos de mestre do espetinho.
E por que estou contando essa novela toda? Porque eu tenho lido muita coisa estarrecedora sobre o Flamengo e tenho relevado, em geral são coisas de garotos às voltas com as precocidades da adolescência ou então grunhidos selvagens, mas tudo vem contido na barreira sanitária dos 140 caracteres, I can handle!
Mas outro dia li aqui mesmo nesse Mundo Bola, que me dá a honra de poder publicar umas besteiras de quando em vão, um texto que me aborreceu demais. De verdade.
Nada contra o Rondi Ramone, que aprendi a admirar quando ele escrevia no Urublog, eu mesmo escrevia lá de vez em quando, eu não conheço o Rondi, nunca falei com ele, ou se se falei esqueci, mas temos dezenas de amigos em comum e o texto dele rendeu dezenas de “ahs”, centenas de “ohs”, milhares de homenagens, apoios entusiasmados, aplausos efusivos e tudo o mais que de elogioso houver para a tese que ele sustentou com coragem, de que o Flamengo está em desintegração.
Leia: Flamengo em desintegração
Em síntese -- e para não ser injusto, eu vou transcrever ao pé da letra o que disse o Rondi - afirma o texto: que o Flamengo contemporâneo precisa acabar; que o Flamengo de hoje, de planilhas, de expulsão do povo de sua própria casa e que se transformou em máquina de venda de tudo, deixa o mercado contente e a torcida descontente; que o Flamengo não tem mais uma identidade a qual construir uma imagem de si, um ideal para o qual se lançar, não sabe de onde vem e nem onde quer chegar, a não ser nas boas relações com o mercado. E dizendo que a diretoria força uma nova identidade com a qual as partes do corpo não se reconhecem, finaliza afirmando que todo dinheiro do mundo não fará o Flamengo ter potência novamente até que essa questão seja levada a sério, pois se vencermos, não saberemos como, nem para quê.
Normalmente não dou muita trela para essa cantilena de que o Flamengo perdeu sua identidade, que o futebol se elitizou, que é a era da Fla-Selfie, que bom era no tempo da geral, do mijo na cabeça, da arquibancada de cimento, que saudade do Gerdau gritando “olha o meio”. Tenho meus motivos para ignorar esse saudosismo, que é típico de quem nunca viveu o perrengue do velho Maraca e não faz a mínima ideia de quem é (ou foi) Gerdau.
Mas esse texto do Rondi não tô a fim de deixar passar em branco não. Porque, convenhamos, não é uma platitude qualquer, é uma platitude adulta, refinada, erudita, elaborada, estruturada de forma refletida e fria, em uma embalagem sofisticada.
Tem algo em comum entre todos esses militantes em busca da nossa identidade perdida. É gente como eu, estudada, de classe média, que bebe cerveja e vinhos caros, que curte gastronomia, que tem camisas oficiais novinhas, que tem smartphones modernos, que frequenta lugares descolados, mas que se arvora falar em nome de outros rubro-negros, advogam em nome de Gerdaus imaginários, que julgam excluídos e que juram que retornarão aos montes às arquibancadas quando o ingresso for R$ 10, R$ 20 ou, vá lá, R$ 100,00 mais barato.
Não quero cometer o mesmo erro deles e tomar partido de todos os Talismãs Brasil afora, afinal o que mais tem por aí é Talismãs, humildes rubro-negros que jamais foram a um estádio, mas de um Talismã em particular, o nosso Talismã, o Talismã da FLA RS, desse eu posso falar com tranquilidade, afinal eu convivo com ele toda semana.
Ele tem algo entre 50 e 60 anos, nasceu em Santa Catarina, esse enclave abençoado da Região Sul pródigo em gerar rubro-negros, já há tempos está por aqui nos pampas vendendo seu churrasquinho maroto. Mas o sonho da vida dele era um dia viajar para ver o Flamengo jogar, essas promessas que bêbado faz a gente fez, garantimos que iríamos levá-lo ao Maracanã, tá na lista, acho que ainda vamos cumprir, desde que Maracanã haja.
O Luiz, nosso Embaixador, gaúcho de boa alma, coração melhor ainda, que ao contrário do Talismã ia ao Maracanã desde pequeninho, não exatamente para torcer, mas porque a mãe tinha se mudado para o Rio, trabalhava de ambulante no Maracanã, não tinha com quem deixar as crianças, aí foi deixando o Luiz na arquibancada, ele apertando os olhos de 12 graus de miopia foi prestando atenção no Zico, foi ficando cada vez menos gaúcho e cada vez mais Flamengo, enfim, um dia o Luiz voltou para o Sul, trabalhou duro, melhorou bem de vida e achou que não era justo que o Talismã fosse esperar eternamente os bêbados honrarem a promessa, o Luiz descobriu o nome do Talismã, comprou uma passagem para Curitiba, deu uma camisa da FLA RS para ele e foram todos para a Arena da Baixada na Libertadores, Matheus Sávio, Gabriel, essa parte vocês já sabem.
Tive a sorte de ir para Curitiba em outro voo, quem foi no voo do Talismã chegou lá com os olhos marejados porque o Talismã, que nunca tinha andado de avião, foi contando suas histórias e desfilando sua simplicidade, nunca perguntei os detalhes, só sei que todos se emocionaram.
E sabem porque eu tô contando essa história imensa? Porque o Talismã realmente conseguiu materializar a tal identidade rubro-negra, essa mesmo que o Rondi e tantos outros dizem que está desintegrada, irreconhecível e expulsa da própria casa.
Só que ao contrário da identidade imaginária que rende debates acalorados, a identidade rubro-negra do Talismã vai ser de PVC, do mesmo material da sua casinha nos fundos do estacionamento. O Luiz, já disse aqui, um homem bom, ajudou o Talismã a preencher uma proposta de um cartão de crédito de limites modestos, mas não tão modestos que não caibam uma mensalidade de um plano de Sócio Torcedor, fez um e-mail para o Talismã, que nem e-mail tinha, preencheu o formulário no site. E assim, com essas modernidades todas, o Talismã está virando sócio-torcedor do Flamengo, sua maior alegria é essa aí, carregar a identidade do Flamengo no bolso, logo vai chegar pelo correio, ele juntando as moedinhas dos churrasquinhos para pagar a fatura todo mês.
Escolhas, sempre elas. Não estou bem certo de que ingressos a R$ 20,00 trariam de volta hordas de Gerdaus e tornariam mais felizes suas tardes de domingo. Mas tenho plena convicção de que times ricos podem deixar o mercado contente, mas deixam muito mais contentes ainda os Talismãs, porque tendem a ser vitoriosos.
E quando as vitórias e conquistas vierem (e elas virão, incréus, não desanimem) vocês poderão teorizar à vontade sobre seus propósitos, mas o Talismã não tem tempo para esses luxos, vai só chorar de emoção, é melhor ser alegre que ser triste, alegria é a melhor coisa que existe, para ele, se Deus quiser, sempre haverá muito o que comemorar e churrasquinhos para vender.
Walter Monteiro é advogado com MBA em Administração. Membro das Comissões de Finanças do Conselho Deliberativo e do Conselho de Administração do Clube de Regatas do Flamengo. Escreve sobre o Flamengo desde 2009, em diferentes espaços.
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