Mãe, quanto foi o jogo? (A história de um Flamengo x River Plate)

28/02/2018, 09:04

Uma eternidade.

Os poucos metros que separam o portão de acesso do campus do cacho de orelhões posto à disposição do público transmudam-se em intermináveis léguas. Transido de expectativa, pouso as mãos trêmulas em um dos aparelhos e insiro o cartão, chave do juízo final, do veredicto que se revestirá do condão de pautar meu estado anímico nos próximos minutos, horas, dias. O som seco e metálico que se perpetua enquanto a ligação não se completa é angustiante. Brota um suor que me enregela a pele, rajadas taquicárdicas ameaçam comprometer qualquer capacidade de compreensão da realidade. As entranhas parecem-me emergir pela boca quando o característico som agudo intermitente enfim brota do telefone, logo sucedido por uma familiar voz feminina, que, ao invés de confortar, ninar e acalmar, termina por me fazer explodir em espasmos de ansiedade. “Alô, filho, tudo bem?”. Em um derradeiro esforço, reúno as últimas forças da minha existência e, num sopro de voz, consigo expelir a pergunta vital que me trará a única verdade que, perdigueiro, persigo nesse exato início de manhã e que, sem a qual, seguirei moribundo, inerte, exangue.

 
“Quanto foi o jogo?”
 

Uma semana longe de casa. A primeira vez na minha vida de jovem universitário, sedento de vida, de experiências, cioso de autonomia e liberdade. Atributos feericamente arremessados em alucinadas tardes e noites de bebedeira, flertes, festas e tudo o mais afeto aos anseios de um jovem rapaz latino-americano sem dinheiro no banco que viaja com a galera.

Com efeito, não há madrugada que resista às rodadas de dominó “a cachaça”, ou às sessões de forró que fazem ferver hormônios e instintos, ou aos mais comportados, mas não menos pulsantes, passeios como o do bugre “com emoção” que cavalga a colossal montanha-russa de areia. As conversas regadas a hectolitros de cerveja e aguardente, os sonhos compartilhados, as histórias contadas, os planos para o futuro, vestidos de matizes verborrágicas, caudalosas de existências que não se permitem pensar em cinza ou aceitar o meio-termo. Vida louca, louca vida.

O sujeito que dorme enrolado em seu próprio paraquedas, a impagável discussão entre o paraense e o cuiabano sobre as virtudes do carimbó e do rasqueado, o vitorinha que se jacta de morar em um quarto totalmente decorado com as coisas do seu clube, o maluco que canta a dor e a delícia de ter sido abandonado pela namorada, a garçonete que flerta com todos os mancebos de uma mesa de bar, os ruídos lúbricos da piscina do campus, ignorados por uma vigilância menos preocupada em reprimir do que em espiar.

A carioca que era fã do Júnior Baiano… (É mau, pega um, pega geral)

“Tá tudo bem, filho. Foi 1-0 e o Flamengo ganhou nos pênaltis”

O urro gutural e eufórico faz alguns transeuntes menearem seus rostos, para logo depois tornarem às suas vidas. Indiferente, agora clamo por detalhes. Agora não interessa o sono de noites perdidas, são irrelevantes as olheiras, o cansaço, as três horas de sono. Quero detalhes, quero fatos. De quem foi o gol, quem jogou bem ou mal, se alguém foi expulso, essas coisas.


 
E do outro lado a mãe paciente e compreensiva consegue represar sua irreprimível necessidade de saber como o filho anda, se tá comendo direito, se tá dormindo, se não tá faltando nada… E se põe a narrar como foi o jogo, “mãe, mas precisa ser rápido, daqui a pouco o cartão acaba”, e descubro que Gilmar foi o herói, pegou dois pênaltis, fechou o gol no tempo normal e, pra coroar, ainda converteu uma cobrança. Que o River Plate era um time bom, que o jogo foi difícil, que tinha um tal de Ortega que o narrador falava que era um “novo Maradona”, que o juiz não deu dois pênaltis pra gente, que o gol foi do Rogério de cabeça, e vou ouvindo tudo aquilo e subitamente uma sensação estranha me vai subindo e tomando todo o corpo. Uma espécie de melancolia, quase uma dor. Um aperto.

Porque, no calor da batalha, no ardor da disputa, no momento em que o Flamengo decidia a vida e a morte na competição, eu não estava lá, de braços dados, berrando, xingando, pulando. Jogando junto. A cadeira de fé, diante da televisão, vazia, silenciosa, enquanto o time “se virava sozinho”. Agora, o relato parece doloroso, provoca pontadas. Eu deveria estar exultante, mas só me é concedida a vontade de ficar em silêncio.
 

“Valeu, mãe. Agora tenho que desligar. Daqui a dois dias estou de volta. Estou bem. Beijo.”
 

E volto pro alojamento.
 
 
 
Saudade do Flamengo.
 
 
Imagem destacadas no post e redes sociais: Divulgação / Flamengo.
 


Adriano Melo escreve seus Alfarrábios todas as quartas-feiras aqui no MRN e também no Buteco do Flamengo. Siga-o no Twitter: @Adrianomelo72.


 

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