O blog entrevistou o jornalista Joza Novalis, um dos mais entendidos do futebol sul-americano.
O assunto? Claro: Taça Libertadores da América.
Confira:
O Flamengo tem tido vexames na Libertadores. Nas duas últimas edições foi eliminado na fase de grupo. Pelo elenco que tem, pelos nomes que ainda vão chegar, acredita que finalmente o clube entre pra ganhar?
Veja, um dos problemas de nossos dirigentes e comissões técnicas, e que afeta também a jornalistas e por extensão também aos torcedores, é o pouco conhecimento do rival. Mais que isso, a falta de dimensionamento sobre ele. Nisto, somos imberbes perto dos sul-americanos em geral. Eles olham para nós preocupados, nos estudam e nos dimensionam no real tamanho e capacidade que possuímos. Em seguida, canalizam esses esforços para as partidas contra nós. Então, afirmo de cara, o Flamengo pode não apenas passar de fase, mas avançar muito no torneio e chegar às suas fases decisivas. Porém, tudo isso em tese; para tanto, terá de fazer suas lições. E creiam-me, elas não são poucas. A primeira delas é entender que as coisas não dependem só do Flamengo, mas também dos rivais: eles existem e, no caso, são muito bons. Prova, portanto, de como as coisas são difíceis está no fato de que se o Rubro-Negro fizer tudo corretamente ainda terá de passar por rivais duríssimos e que também podem fazer não apenas as coisas certas, mas ainda em nível mais profundo do que o gigante carioca.
A diretoria do Flamengo nunca tratou a Libertadores como deveria, sempre considerou uma competição igual ao Estadual. Qual o segredo pra disputar e ser vitorioso nessa competição?
Esta observação ganha relevo, se olharmos para a campanha na Sul-Americana de 2016. A oportunidade era ímpar para o início de um processo de internacionalização. E para um clube como o Flamengo isto importa muito à medida que atrai muitos recursos, à medida que a equipe chega às instâncias finais. Atrai patrocínios e recursos que veem sobretudo da reconexão de muitos torcedores com a alma vencedora do Rubro-Negro. Aliás, dirigentes, não só do Flamengo, abordam muito o assunto, mas parecem ter dificuldades para entende-lo em sua profundidade. Vejo a participação na Sul-Americana como um fiasco que só não foi maior do que as ideias e posturas que o materializaram. O confronto contra o Figueirense escancarou erros que pediam atenção. Eles foram ignorados. Efeito disso foi a eliminação vexatória para o humilde Palestino. Na ocasião, torcedores me pediram, no twitter, que fizesse observações sobre o time chileno. Poucos levaram a sério quando eu disse que embora favorito, o Fla deveria ter uma atenção especial para o rival. Concordaram com o favoritismo, mas fizeram chacota sobre a necessidade da atenção ao desconhecido rival. Ora, o comportamento desses torcedores vinha de fatores culturais (somos sempre os melhores do mundo no futebol), mas também da leitura do que se passava na cabeça da comissão técnica. Então, após a contestável vitória no Chile, enquanto o técnico Nícolas Córdoba passou para seu elenco mais de 70 horas de vídeos sobre o Flamengo, além de estudos completos sobre cada um de seus jogadores, por aqui quase nenhuma pessoa considerou que o representante brasileiro já não estava nas quartas de final. Então, a postura correta, nessas competições, pode ser uma arma mais eficiente do que os grandes elencos. Dirigentes de clubes brasileiros pensam no elenco. A direção do Flamengo se comportou assim, da mesma forma que sua comissão técnica. Portanto, este é o primeiro erro que não deve ser cometido, quanto à pretensão de ser vitorioso na competição. A Católica deve selecionar dois observadores para acompanhar o seu rival brasileiro na Taça Guanabara; um deles é uruguaio e muito profissional. Claro que podemos pensar que o Fla poderá esconder o jogo, no Regional, atuando com reservas, time mesclado e tal. Mas esses observadores, antes de virem para ver jogadores, virão para entender a filosofia de jogo do treinador da equipe, além de fatores como ação e reação numa partida, comportamento da equipe frente ao apoio ou crítica da torcida durante um jogo e assim por diante. O Flamengo não precisa copiar o método da Católica, que, aliás, não será adotado nem pelo San Lorenzo. Porém, precisa fazer algo em torno de olhar para o rival, entender suas grandezas e limitações e saber armar-se corretamente para derrota-lo. Ou seja, para vencer na competição, o extracampo é tão fundamental quanto a um elenco de grande qualidade.
Sobre Donatti, Cuellar e Mancuello. Eram titulares absolutos em seus antigos times, porém agora enfrentam dificuldades de se encontrarem no Flamengo. São jogadores com cara de Libertadores? Qual explicação e o que acha deles?
Donatti talvez o grande jogador do Rosário Central, na Libertadores passada. Muitos falavam que Pinola era um zagueiro melhor. Mas “el Pelado” Pinola vinha mal na carreira e só voltou a ganhar nível ao lado de Donatti. Sua capacidade de orientação e de posicionamento e reposicionamento de seus colegas de defesa é rara. Por isso, foi o grande zagueiro do campeonato argentino anterior e um dos melhores da equipe, na Libertadores. Sua capacidade de orientar é fruto também da confiança que seus colegas depositam nele. E tal confiança só existe porque Donatti compra em campo a briga por qualquer jogador. Exemplo: na estreia contra o Nacional, no Gigante de Arroyto, quase todos saíram com a impressão de que Donatti falhara em lances capitais. Contudo, na ocasião, um garoto muito bom, e que não vinha da base do clube, estreava na equipe e não podia falhar diante de 41 mil torcedores. Se alguém puder ver um tape daquele jogo, verá que todas as supostas falhas de Donatti, na prática não foram dele, mas de Gastón Gil Romero. Donatti encobriu todas essas falhas posicionando-se nos lugares certos para que, aos olhos dos outros, ele fosse o vilão. E foi o que aconteceu. Esta é uma grande qualidade deste jogador. Alguns o acusam de lento, mas ele sabe se posicionar e posicionar os seus companheiros nos espaços certos do campo. E algo que poucos se recordam é que o Central atuava lá no campo de ataque, deixando sua defesa exposta. Portanto, ele tem sim a cara de Libertadores. Mancuello, Idem. Cuéllar também possui tal característica, mas bem atrás de seus dois companheiros de equipe. Dos três, Cuéllar é o melhor pelo caráter de sua polivalência. Ou seja, se posicionado em outros setores do campo, não tende a diminuir o tamanho de seu futebol. Claro, muitos irão discordar. Porém, a análise sobre o jogador precisa considerar suas passagens anteriores, pelo Cali e Junior de Barranquilla. Quanto à adaptação isto é bem complicado. Mas asseguro que passa também pela confiança que o jogador sente depositada nele pela comissão técnica. Recém-chegado ao clube e ainda desacreditado, Rafael Vaz teve uma falha grotesca, contra o Fluminense. Zé Ricardo foi mestre em não abandonar o jogador no banco de reservas. E o resultado sabemos qual foi, o zagueiro se tornou um dos melhores da equipe. Já Donatti teve uma infelicidade contra o Figueirense. Porém, o tratamento que recebeu não foi o mesmo. Cuéllar iniciou bem sua participação na equipe ainda dirigida por Muricy. Lembremos: poucas coisas funcionavam naquela equipe. Com Zé Ricardo a equipe pratica um tipo de jogo em que muitas vezes meio-campo e laterais atacam ao mesmo tempo. Defesa fica exposta num corredor aberto pelo centro ou pelos flancos. Então, Marcio Araújo é colocado à frente da defesa. Na prática ele atua como um zagueiro à frente da linha defensiva. Corta bola aqui, corta bola lá, mas apresenta dificuldades extremas de dar um passe de cinco metros. Tudo bem, é a escolha do técnico e eu o respeito pelo seu trabalho no comando da equipe. Porém, se colocasse um zagueiro de verdade na posição não seria melhor? Vem menos ao caso; importa mais é que o técnico e parte da torcida esperam de Cuéllar a mesma coisa. E como ele não faz desse jeito, não serve. Pior que isso é o fato de que Cuéllar não faz da mesma forma que Marcio Araújo porque “não é um primeiro volante”. E o que começa como uma percepção ingênua vira uma verdade. Ora, Cuéllar era um excepcional primeiro volante no Junior de Barraquilla. Por vezes, era segundo também. Sabia marcar, oferecia armação qualificada antes e dentro do grande círculo e muitas vezes chegava à frente para concluir. O fato é que é moderno demais para a posição e Zé Ricardo não quer nada disso. Resultado, também Cuéllar foi para o banco. Portanto, é também por isso que Donatti e Cuéllar encontram dificuldades no clube e estão longe de conseguir uma adaptação satisfatória. Embora eu creia que Mancuello possa entrar mais na equipe, o caso dele é diverso: tem forte concorrência e teve, dentre os três, maiores oportunidades.
Qual sua opinião sobre o trabalho do Zé Ricardo e sua pouca experiência pra disputar logo de cara uma Libertadores. Gosta dele?
Experiência em si pode ajudar, mas não é decisivo. Zé Ricardo representou a melhor decisão possível em termos de substituir Muricy. A direção não concordaria, mas Zé Ricardo mostrou também o quanto Muricy fora uma péssima escolha. Indiscutível que Zé Ricardo encontrou um padrão para a equipe e a fez jogar. Mas a meu ver, o esquema se modificava pouco e se revelou passível de ser encaixado pelas equipes rivais, ao fim da temporada. Um dos aspectos do esquema, previa que o extremo desse combate no lateral ainda no último terço do campo. Desta forma, tanto Jorge quanto Pará/Rodnei deveriam se deparar com o atacante no máximo no um a um, bloqueando a profundidade do jogo rival e obrigando-o a explorar o povoado centro à frente da grande área. Quando a bola então caia neste setor, quem era o primeiro homem a dar o combate? Marcio Araújo. Se o esquema funcionasse bem, este jogador poderia ser Cuéllar, por exemplo. A vantagem, no caso, é que quando o colombiano pegasse a bola, a boa armação da equipe começaria dali, e com qualidade. Porém, o que começou com uma entrega total foi se perdendo com o passar dos jogos. Os extremos apresentavam dificuldades para dar o bote, o que obrigava o lateral a atuar quase como um volante, combatendo ou tentando combater o atacante, que fugia fácil da marcação de extremos como Cirino. Então, mesmo que Jorge se consagrasse, mostrando até um potencial para atuar como volante, o seu cacoete para tal não era dos melhores. Mas se no caso dele as coisas não se complicavam tanto o mesmo não ocorria pelo setor direito da defesa. O fato é que nos dois casos a bola muitas vezes passava solta para o campo de defesa do Flamengo. Quando isto acontecia, a defesa exposta ganhava o reforço de um esforçado zagueiro de corte e que atuava à frente de Réver e Vaz: Marcio Araújo. Ele corria de um lado a outro e muitas vezes fazia o corte. Os olhares que aprovaram a temporada do volante não se deram conta de que talvez um outro alguém com ótima preparação física poderia fazer o mesmo. Se o esquema funcionasse corretamente, Marcio Araújo era desnecessário, e se ele era uma peça necessária num esquema que estava doente, o correto era aplicar a tal esquema uma cura. Nesta hora, o treinador precisa aparecer. E Zé Ricardo não apareceu. E por não aparecer, mostrou limitações que precisam ser consideradas.
Zé Ricardo tem alguns traços dos grandes treinadores. Tem personalidade, pulso firme e banca seu trabalho mesmo diante de possíveis pressões. Digo possíveis pois sei que da direção do clube não parte outra coisa que não seja apoio. Ele tem o comando da equipe e não permite que nenhuma voz descontente ganhe relevo. No entanto, um grande técnico há de ser também um grande gestor de elenco. Não basta tirar um jogador do time e colocá-lo no banco de reservas. Ao fazer isso, o técnico precisa cuidar para que o jogador não vá para o banco inseguro e infeliz. Se isto acontecer, esse jogador poderá se perder completamente. A partir do banco ele dificilmente vai reconstruir sua segurança e autoestima. Quando tiver uma oportunidade, dificilmente atuará bem, pois será presa fácil da pressão das circunstâncias, da necessidade de provar algo para o técnico ou torcida não em quatro ou cinco jogos, mas em 90 minutos etc. Nenhum jogador é santo ou não mereça uma parcela pela queda de seu rendimento, mas também cabe ao técnico uma parcela considerável de tal responsabilidade. E isto fica ainda pior para o técnico, se tal ou tais jogadores apresentavam históricos positivos em seus clubes anteriores, casos principalmente de Cuéllar e Alejandro Donatti. Contudo, acredito que Zé Ricardo possa comandar o Flamengo na Libertadores, desde que faça as necessárias adequações ou readequações na equipe, quando necessário e quando ele, por sua inteligência, perceber o quanto elas serão vitais para que o Rubro-Negro não caia no encaixe da marcação de seus rivais.
O campeonato argentino está em andamento, o San Lorenzo vai estrear na Libertadores já com ritmo de campeonato, mas o cansaço de final de temporada para eles pode pesar. Acha positivo ou negativo?
A questão passa muito pelo caráter do trabalho físico no Ciclón. Poucos sabem, mas o San Lorenzo tem um elenco vastíssimo. Alguns jogadores atuavam pouco. Nesses dias, a mídia tem noticiado as saídas de nomes importantes, como Mas, Blanco, Cauteruccio e outros. Creio que será positivo, pois bons jogadores que já estavam no clube serão forno para o amadurecimento de jovens da base que pedem passagem.
Com a Libertadores durante o ano inteiro, vai criar paralelo com o Brasileiro. Na sua opinião, por acontecer de forma inédita, como os clubes brasileiros deverão trabalhar para disputar fortemente as duas competições?
Sem desespero, com calma, planejamento adequado e, mais que nunca, com a ideia de que bons jogadores são importantes dentro de campo, mas também como forno para os jovens da base. Os elencos precisam se ampliar. Mas grande número de contratações onera os cofres dos clubes.
Assim que o grupo da Libertadores foi divulgado, muitos argentinos temeram o Flamengo, por ter entrado no grupo do San Lorenzo. Mesmo após anos de fracasso na Libertadores o Rubro Negro segue respeitado por sua força. Mas como traduzir isso dentro de campo? O adversário trata mesmo o confronto contra o Flamengo como uma verdadeira final?
Sem dúvida. O tempo inteiro aqui estou falando a partir da perspectiva do Flamengo, daí que só falo das outras equipes. Na perspectiva deles, porém, o Rubro-Negro de fato é assustador. Mas na sua pergunta já há uma resposta. Eles tratam seus jogos contra o Flamengo como uma final, basta ao Rubro-Negro fazer o mesmo. Mas não da boca para fora. Se vão estudar o Flamengo de forma profunda, a esquadra carioca há de fazer o mesmo. No caso do San Lorenzo e Católica há uma conexão significativa das equipes com suas massas torcedoras. Principalmente no caso argentino, os torcedores apoiarão sua equipe mesmo se ela estiver perdendo de goleada. No dia em que um clube brasileiro fizer o mesmo, ou seja criar tal conexão, mesmo em situações adversas, será ainda mais temido dentro de campo pelos rivais da América do Sul.
André Amaral comanda há anos o Ninho da Nação, um dos blogs rubro-negros mais importantes da internet e publica alguns posts neste espaço em parceria com o MRN. Siga-o no Twitter: @Ninhodanacao
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