Samir no ano passado, Jorge agora. Com dois nomes, a lista de jogadores que tinham atuado como profissionais apenas no Flamengo vendidas para o Primeiro Mundo do futebol em pouco mais de um ano já quase iguala a da década anterior, quando Jônatas, em 2006, Renato Augusto, em 2008, e Aírton, em 2010, foram os únicos vendidos para grandes mercados da Europa.
A longa ausência do Flamengo no mainstream do mercado do futebol mundial é um dos fatores que explicam o valor à primeira vista modesto conseguido por um jogador com o potencial de Jorge. Titular absoluto do Flamengo, eleito o melhor lateral-esquerdo do último Brasileiro, recém-convocado para a seleção brasileira, com apenas 20 anos e muito espaço para crescer, Jorge, a olhos leigos, parece valer mais que os cerca de 9 milhões de euros que o Monaco ofereceu - e o Flamengo aceitou.
A cifra fica ainda menor se comparada aos 15 milhões de euros que o São Paulo vai embolsar por David Neres, jogador ainda em um estágio anterior da carreira, na seleção sub-20, com apenas oito jogos como profissional. Apesar de o mercado do futebol valorizar mais atacantes do que laterais, a explicação da diferença de preço não se encerra aí.
Diferentemente do Flamengo, o São Paulo tem uma longa lista de jogadores formados na base -- ou contratados quando ainda muito jovens -- e vendidos para o mercado europeu de maneira quase ininterrupta há décadas. Desde Raí em 1993 até Gabriel Boschilia, que agora será companheiro de Jorge no Monaco, em 2015, raro foi o ano em que o São Paulo não realizou ao menos uma venda milionária para a Europa. Nem sempre de bons jogadores, nem sempre formados na base: o lateral Douglas, que o clube paulista prospectou no Goiás em 2012, e dois anos depois, sabe-se como, foi parar no Barcelona por quatro milhões de euros, é o maior exemplo da capacidade do São Paulo certas vezes vender até geladeira para esquimó.
E por que os clubes europeus confiam nos jogadores que vêm com o crivo do São Paulo, seja formados na base, seja encontrados pelos olheiros do clube paulista? Porque o retorno dos seus "produtos" é muito bom: os jogadores costumam dar retorno esportivo e posteriormente financeiro, e não costumam vir com "defeito". Raras são as histórias de jogadores que saem do São Paulo e seis meses ou um ano depois estão forçando a barra para voltar para o Brasil, como tanto se vê por aí. Dos três nomes rubro-negros citados no início deste texto, por exemplo, só Renato Augusto teve carreira mais ou menos longeva na Europa- e mesmo assim entrecortada por uma série de graves lesões.
A grife de bom vendedor, e o retorno financeiro que vem com ela, não se constrói da noite pro dia. O Flamengo tenta passar por um processo de reconstrução da sua base, que inclui aumento de investimentos e o início, nos próximos meses, da construção de um CT para a categoria - algo que o São Paulo já possui desde 2005 -, além de outros passos indicados pela consultora Double Pass, a mesma que cuida do planejamento de longo prazo da seleção alemã. Além de aumentar o retorno esportivo dado por seus jovens, ainda pouco aproveitados no time principal, o Flamengo tem sim o objetivo de obter maior retorno financeiro com os jogadores.
A venda de Jorge pode ser mais um caso episódico como foram os de Jônatas, Renato Augusto e Airton, ou pode marcar o início de um novo ciclo de inserção da base rubro-negra no mercado europeu. Nesse caso, a venda por um valor comparativamente modesto hoje pode dar um grande retorno no futuro próximo.
Voltando ao caso do São Paulo, um levantamento certamente incompleto e imperfeito feito por esse blogueiro indica que, apenas em vendas para a Europa, o São Paulo obteve, em valores atualizados, R$ 480 milhões entre 2006 e 2015. Esse valor não inclui o dinheiro obtido como clube formador nas revendas desses mesmos jogadores. Já o Flamengo, ainda incluindo na conta Willians, que não foi formado no clube, e Caio Rangel, que não chegou a jogar pelo profissional, ambos vendidos para clubes italianos, movimentou nas suas vendas R$ 65 milhões -- e grande parte não entrou nos cofres rubro-negros, porque pertencia a empresários.
Se com Jorge essa história pode começar a mudar, nos próximos anos o Flamengo pode ter um divisor de águas em termos de negociação para o exterior. Ainda com 16 anos, o atacante Vinicius Júnior disputa nos clubes e na imprensa europeia uma atenção que não se vê sobre um jogador rubro-negro desde Sávio, há duas décadas. Se agora o diretor de Futebol Rodrigo Caetano diz que o Flamengo não tem interesse em receber propostas, em 1997, meses antes de realizar a maior venda da história do Flamengo, Kleber Leite afirmava que não queria ficar "marcado como presidente que vendeu Sávio". Vendeu, e ficou marcado por coisas bem piores.
O ideal, é claro, que Vinicius ainda renda boas atuações, vitórias e títulos no profissional do Flamengo antes de seguir para a Europa. Mas, se nas próximas temporadas ele mantiver o padrão de atuação que vem tendo até agora nas categorias de base, um grande da Europa é um destino certo para o atacante, talvez antes de ele completar os 20 anos de Jorge. E por um valor bem superior.
A reinserção do Flamengo no mercado da bola começou. Quando a janela voltar a abrir, veremos os próximos capítulos. Até lá, acompanhemos Jorge como uma espécie de embaixador do produto rubro-negro no Velho Continente, um cartão de visitas do Flamengo ao mercado. A partir daí, o surrado e nos últimos tempos um tanto mentiroso slogan "craque o Flamengo faz em casa" pode começar a ser revalidado -- tanto internamente como para exportação.
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PS: Esse texto marca a estreia do meu próprio blog no MRN Blogs, o Preto No Vermelho. Semanalmente, tentarei trazer um pouco de contexto e ponderação a temas rubro-negros da semana, como já vinha tentando fazer no blog Cultura RN, que segue sob o comando de Diogo Almeida e blogueiros convidados.
Rodrigo Rötzsch é jornalista e coeditor do MRN. Siga-o no Twitter: @rodrigorotzsch.
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