Caso Gerson: sobre racismo, futebol: discursos e práticas
Não basta o discurso, a prática é necessária e o mundo do futebol parece sentir baques somente na perspectiva econômica
Racismo é a expressão genuína de um sistema de dominação que organiza a partir do poder, da subjugação, do genocídio, do controle de corpos racializados, tudo que é conteúdo e contorno da nossa sociedade, desde as sutilezas até a racionalidade como um todo. Não é só um está aqui ou acolá, está presente, é presente, é substantivo em nossa vida.
Não é uma temática nova, ou algo que se usa para coitadismo ou coisa do tipo. É sobretudo uma história de luta contra esta dominação. E não nos enganemos. Sempre se lutou contra o poder colonizador, contra a organização de supremacia branca, contra o modo de produção escravocrata, contra o mito da democracia racial brasileira e se segue lutando, cotidianamente, pela força de movimentos sociais, coletivos organizados, pessoas pretas e aliados, numa perspectiva antirracista, que reflete e pensa a subversão deste mundo como objetivo, mas articula e propõe mudanças diárias para melhoras significativas na vida da população negra.
Do mesmo autor: 2019, lembrança boa; 2020, presente possível
E toda essa labuta, que é lógica, constitui um pensamento concreto e correto, uma característica que demonstraria a superação dos erros históricos promovidos pelas pessoas, instituições, sociedade, estado e capital, na realidade, pelo poder e dominação, acaba não sendo, ainda mais numa conjuntura que alimenta abertamente os discursos de não existência de racismo. O que também é combustível para uma sorte de relativizações, de “não foi bem isso”, “não sou racista, mas”, “racismo está na sua cabeça”, “as pessoas negras que são racistas” e variantes sem pé nem cabeça que não observam a relação de dominação, poder, controle e subjugação de corpos.
E como regra, não exceção, irá acontecer em todas as searas da sociedade, inclusive no futebol. Ah, o futebol que nos preenche e dá tantos momentos de alegria e lágrimas. Mas também é um mundo específico que reverbera a racionalidade vigente e como efeito, pode acabar com a vida de pessoas, passar pano pro racismo, levar pessoas negras ao ostracismo, invisibilizar, como o goleiro da seleção brasileira de 1950, o Barbosa; como fora com o menino L.E. de 11 anos em Caldas Novas; como já foi com nosso goleiro Hugo, como foi agora com o Gérson, nosso Coringa do Mengão e como é em todos os episódios que já aconteceram na história do futebol e eram normalizados.
Não existe cerimônia, existe tanto discurso quanto prática para que as pessoas racializadas buscarem seu lugar, ficarem na sua, desde de um cala a boca até morte. O que vemos de contrapartida para inibir com radicalidade (ir a raiz) destes casos no mundo do futebol? Bom, vemos a FIFA mantendo uma campanha publicitária de não ao racismo há anos, sem efeitos práticos e sem respostas amplas para a comunidade esportiva. Seguem acontecendo cantos e manifestações racistas, sobretudo de algumas torcidas da Europa; seguem tendo declarações de dirigentes, de técnicos que reafirmam o racismo, segue a lógica da desumanização de adversário, mas pares de profissão, pela sua condição de existência.
Não basta o discurso, a prática é necessária e o mundo do futebol parece sentir baques somente na perspectiva econômica. É imprescindível que mais jogadores façam como o Gerson, como Demba Ba e Pierre Webó. Não aceitarem calados. E ir além, serem paredistas, não admitirem a rotina, a continuidade das atividades como se fosse caso isolado ou naturalizado.
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Evidente, estamos aqui pensando sobre questões possíveis nos limites do futebol. Seria incrível um real engajamento de jogadores negros em apoio de todo gênero aos movimentos e redes que realmente tocam esta difícil luta contra a dominação. Isso não vai parar ou mudar, então que atletas e esportistas negras e negros em geral também não parem, também não se calem e “incomodem”, porque na realidade não é incômodo. É o expurgo de um grito de “basta!” contra o racismo. Quem se doer, se aguente ou tome prumo, pois vai ter muito mais.