Foram décadas nos perguntando quando finalmente retomaríamos nossa vocação natural de nos impormos como gigantes
Ser Flamengo não é uma coisa que é fácil de explicar. Não é torcer pra um time qualquer, comemorar essa ou aquela conquista, idolatrar um ou outro jogador. Ser Flamengo é fazer parte de uma conjunção de fatores maiores que a razão e a compreensão humana. É ter a consciência de fazer parte de algo que transcende um clube ou um país. É sentir-se parte de uma Nação de origem carioca que se espalhou por todos os cantos do mundo. Somos milhões que compartilhamos uma paixão e laços rubro-negros de pertencimento. Jamais estamos sós, não importa onde estivermos.
Quando se tem essa magnitude existencial, o que se espera é sempre grandioso. É o maior possível. Não se cogita menos do que o auge, o topo do mundo. Topo esse que atingimos em 81, liderados pelo nosso Deus Zico. E desde então vivemos a cantar as conquistas daquela geração de craques, as memoráveis batalhas vencidas e taças expostas na nossa sala de troféus.
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Só que o tempo foi passando — décadas! — e a escassez de novos heróis flamengos, as parcas conquistas de relevância aliadas a incontáveis vexames que se sucederam como que culpa de alguma maldição que cruelmente se apossara de nós, fizeram com que uma geração de rubro-negros vivesse uma crise existencial: como poderíamos ser tão grandes como inquestionavelmente somos sem que nossa realidade nos representasse de forma factual?
Foram anos e anos de sofrimento e angústia. Foram décadas nos perguntando quando finalmente retomaríamos nossa vocação natural de nos impormos como gigantes avassaladores destruidores e temidos. Até chegar 23 de outubro de 2019.
Não, não é a data de nenhuma conquista. Mas é a noite em que o Flamengo foi Flamengo como poucas vezes na História. O que se viu na relva sagrada do Maracanã foi a exibição de um time capaz de derrubar qualquer um. Do outro lado do campo estava o Grêmio, uma equipe madura, tarimbada, bem treinada, acostumada a decisões. Mas poderia estar o Boca Juniors, o Barcelona, quem fosse. Os homens que vestiam rubro-negro deixaram sua mortalidade de lado e se tornaram semi-deuses. Não há outra explicação para as curas miraculosas de Rafinha, Arrascaeta, Diego e Filipe Luís. Não há substantivos capazes de qualificar o talento de Everton Ribeiro e Bruno Henrique, a estrela de Gabigol, o vigor de Arão e Gerson, a segurança que transparecem Rodrigo Caio e Marí, a intransponibilidade de Diego Alves.
Nossos medos e traumas se esvaíram e em momento algum qualquer um de nós ali presentes e espalhados pelo mundo temíamos o pior. Quem é Flamengo sabe como esse sensação havia se tornado improvável. Durante todo tempo sempre tivemos no peito a certeza que o melhor estava por vir, só não poderíamos imaginar o quanto!
O cronômetro avançava e os gols saiam naturalmente, como se sempre tivesse sido assim — da forma que sempre deveria ter sido. Expurgando o trauma do sofrimento recente, nos olhávamos irmãos e irmãs rubro-negros na arquibancada como se em nossos sorrisos incrédulos confirmássemos que estávamos de fato vivendo aquele momento transcendental. Cinco a zero. Cinco. Na semifinal da Libertadores. A maior goleada entre times brasileiros na competição.
Mais do que a vitória e a classificação para o final continental, o que temos hoje é a certeza que somos quem somos em nossa plenitude. E isso, sem menosprezar a conquista que tanto almejamos e lutaremos com brio para alcançar, é épico, antológico, inqualificável. Não existe no mundo um rubro-negro que hoje não esteja leve, sereno, com a doce sensação de que enfim podemos fruir o flamenguismo absoluto.
O que nos aguarda não é Santiago, não é uma final. O que nos aguarda é a glória. É um futuro do tamanho de nossos sonhos, do peso da nossa camisa. O Flamengo enfim voltou a ser Flamengo e não existe motivo maior do que esse para comemorar.
Que alegria viver esse dia!
Pedro Henrique Neschling nasceu no Rio de Janeiro, em 1982, já com uma camisa do Flamengo pendurada na porta do quarto na maternidade. Desde que estreou profissionalmente em 2001, alterna-se com sucesso nas funções de ator, diretor, roteirista e dramat...