O calendário do futebol brasileiro em tempos de coronavírus
Por Marcus Castro – Twitter: @mvpcastro
A pandemia causada pelo alastramento do coronavírus afeta toda humanidade, em uma proporção raras vezes vista na história. Além do enorme impacto sanitário da crise, temos inegáveis e incalculáveis efeitos econômicos, sociais e políticos. Nada será como antes.
O setor do esporte é um dos que mais agudamente sente o impacto da pandemia, porque a aglomeração de torcedores faz parte da essência das competições. Assim, a maioria delas já foi suspensa ou cancelada no momento em que se escreve esse texto (16 de março).
As competições nacionais de futebol já estão suspensas, no Brasil. Algumas estaduais também já seguiram o mesmo caminho, e decisões complicadas precisarão ser tomadas. Nunca é simples suspender competições, com todas as consequências econômicas, trabalhistas e desportivas dali decorrentes.
Com todas as consequências em mente, além de considerar as limitações impostas pelo calendário, fazemos aqui uma explicação das possibilidades para os próximos anos, sugerindo soluções para minimizar os problemas que hoje enfrentamos.
A questão do calendário mundial
A adequação do calendário do futebol brasileiro ao mundial é um tema que já deveria ter sido enfrentado há muito tempo por aqui. O Brasil, que já tem uma temporada significativamente mais pesada que a dos demais países por causa dos Estaduais, ainda perde, anualmente, bom número de datas por usar o calendário solar, de janeiro a dezembro.
É que nos meses de junho/julho sempre temos algum evento internacional que suspende as nossas competições, ou pelo menos tira toda a atenção das mesmas. Em 2020 seria uma Copa América a devastar o campeonato. Em 2019 foi outra Copa América. Em 2018 foi a Copa do Mundo na Rússia, em 2017 tivemos Copa das Confederações, em 2016 as Olimpíadas. A coisa ficaria ainda pior com o novo Mundial de Clubes a partir de 2021.
Ou seja: já temos um calendário cheio, e frequentemente perdemos de 15 dias a um mês por causa de competições mundiais (aconteceu em 2018 e 2019). E, se não paramos, desvirtuamos todo o campeonato (aconteceria em 2020). E os clubes que eventualmente jogarem o Mundial também teriam muitos problemas de datas (acontecerá em 2021). É simplesmente estúpido fazer isso, porque aqui fazemos uma escolha de se jogar em junho.
Seria muito mais lógico mudarmos a temporada, adotando assim o calendário mundial. Início da temporada em meados de julho, término no final de maio. Nunca mais teríamos que perder de oito a doze datas com eventos internacionais. Nunca mais teríamos conflitos insolúveis com as seleções. Ganhamos datas e valorizamos o produto seleção.
Há sempre aquele que diz ser impossível a adaptação por uma questão climática. Ora, o argumento não faz sentido. Sabem qual o mês mais quente no Brasil? Fevereiro. A temperatura média no Rio é de 31 graus. E aqui sempre se jogou em fevereiro. Dezembro e janeiro tem temperaturas médias de 29 graus. Aliás, a gente joga em dezembro por aqui (campeonato termina na 1ª semana de dezembro). Jogamos também em janeiro (temporada começou dia 18 de janeiro esse ano).
Se é quente, façamos como os espanhóis e italianos no verão europeu: vamos mudar os horários. Jogos de dezembro a março começando mais tarde, às 18 horas. Ou às 19 horas. Depende do lugar. Isso tá longe de ser um problema intransponível.
Assim, a crise do Coronavírus pode nos trazer pelo menos algo positivo, que é uma necessária adaptação ao calendário internacional de futebol, o que na prática nos daria até mais folga para nossas competições locais. Vamos ver a seguir o que isso significaria na prática para 2020, 2021 e 2022.
Brasileiro de transição
O Campeonato Brasileiro é disputado por pontos corridos desde 2003, e os resultados econômicos são muito visíveis. Apesar de eventuais protestos por parte de alguns desportistas, é considerado como modelo de sucesso.
A edição de 2020 começaria em 03 de maio, uma data que é considerada muito improvável para o retorno das atividades esportivas. A NBA, por exemplo, trabalha com uma data para retorno na metade de junho, e mesmo assim sem público. O Brasil terá seu pico da epidemia por volta da virada dos meses de abril a maio.
Mesmo nos cenários mais otimistas, é difícil imaginarmos uma temporada ainda com 38 rodadas encaixadas no calendário. Especialmente se considerarmos que ainda teremos 11 datas para a Libertadores, e 8 outras para a Copa do Brasil.
Observo que o cancelamento da Copa América – inevitável a essa altura – em nada auxilia a questão do campeonato, pois o torneio continuaria mesmo durante a Copa.
Há quem diga, simplesmente, que o campeonato deveria começar em setembro e seguir até maio de 2021, servindo como o primeiro campeonato a seguir o modelo mundial. Ora, isso apresenta alguns problemas evidentes: o mais claro deles é que saltaríamos uma temporada. Teríamos o campeão de 2019 (Flamengo) e o campeão de 2020/21, que na verdade é o campeão de 2021 (com o campeonato começando a disputa em 2020).
Um salto histórico não desejável, claro. Especialmente para o Flamengo, que tem chances reais de vencer em 2020 e em 2021.
Além disso, esse salto geraria uma série de problemas práticos: quem disputaria as competições internacionais de 2021, que começam em fevereiro? Estaríamos no meio dessa temporada 2020/21. Repetiríamos os qualificados de 2020? Muitos clubes iriam se opor, claro.
Ah, mas a Libertadores precisaria se adaptar também. Ok. Aí precisaríamos esticar a Libertadores atual até maio de 2021, começando uma nova em agosto de 2021. Ficaríamos sem campeão de 2020 (e quem disputaria o Mundial do Catar em 2020?). E precisaríamos da concordância de nove outros países.
Precisamos nos lembrar que esses problemas de calendário já ocorreram. Vez por outra, países mudam do calendário solar para o calendário sazonal. Rússia, Ucrânia, Argentina, Colômbia. Vão e voltam. E sempre é necessária uma temporada que fica meio “estranha” até que as competições se encaixem.
Como fazer isso no Brasil? É perfeitamente possível que se façam dois campeonatos brasileiros de transição, mais curtos, no período que temos disponível.
Se nossas competições voltarem em julho, digamos, poderíamos até fazer a reta final dos Estaduais (item à parte, que será analisado a frente).
O segundo turno do Brasileiro tem sua data de início prevista para 22 de agosto de 2020. Como teríamos 6 datas que necessariamente seriam usadas para repor jogos da Copa do Brasil e Libertadores que deixarão de ser jogadas no primeiro semestre, precisaríamos antecipar essa data de inicio para o fim de julho. Assim, os jogos atrasados das Copas caberiam nos meses restantes.
Feita essa adaptação, poderíamos perfeitamente ter um campeonato com turno único, em 2020. Valendo o título e vagas na Libertadores e Sulamericana 2021, dentro do ano de 2020.
Há um detalhe não desprezível na proposta, que foi abordado na Argentina e Colômbia em situações semelhantes: campeonato em turno único tem 19 datas. Alguns times acabam jogando uma vez a mais em casa que outros. A solução encontrada foi a de se fazer uma vigésima rodada. Nos dois países vizinhos se optou por uma rodada extra só com os clássicos locais, que assim seriam jogados duas vezes nessa competição de turno único. Assim, todos jogam 10 em casa, 10 fora, igualando mais as coisas. Ou seja: teríamos dois Grenais, por exemplo, mesmo sendo turno único. 20 datas, campeão brasileiro de 2020.
Ah, mas não dá pra fazer em mata mata? Dá, mas aí aperta mais ainda. Um mata mata com 8 clubes, por exemplo, precisaria de mais seis datas, além de tornar terrivelmente injusta a concepção do campeonato. Há dúvida se haveria essa possibilidade no Estatuto do Torcedor. Seria muito ruim para o Flamengo, sem dúvida. Mas eu creio que sequer há datas disponíveis além das 19 ou 20 propostas.
O campeonato de 2021, da mesma maneira, começaria em fevereiro do ano que vem. Com o mesmo modelo, 19 ou 20 datas, turno único. Dá pra fazer entre fevereiro e maio. Campeão consagrado, e vagas distribuídas para as competições internacionais de 2022.
Aí, finalmente, na metade de 2021, começaríamos com o sonhado momento de pontos corridos seguindo o padrão mundial, começo em agosto de 2021, término em maio de 2022. Sem qualquer interrupção de títulos, sem qualquer problema nas qualificações das Copas. Teríamos, como ocorreu em outros países, doze meses de transição até chegarmos lá.
Rebaixamentos
A questão dos rebaixamentos é um pouco diversa, porque rebaixar um clube após 19 ou 20 rodadas pode ser visto como injusto. Aqui se sugere o modelo argentino: os campeonatos de 2020 e 2021 (os de turno único) sejam contados como um só para fins de descenso.
Assim, os 4 clubes com piores desempenho durante os dois certames seriam rebaixados.
As divisões inferiores, por sinal, não precisam passar pelo campeonato de transição: as series B, C e D já poderiam adotar o modelo europeu a partir de julho de 2021, fazendo o campeonato de temporada inteira até maio de 2022, com os acessos e descensos de acordo. Isso porque eventual salto no histórico de títulos de divisões de acesso não gera muito impacto, de qualquer maneira, e não tem qualquer reflexo em outras competições.
Assim, a Serie B pode ser jogada em pontos corridos, com 38 rodadas, sem maiores problemas, já em 2020/21.
Estaduais
Poucos estão satisfeitos com a posição atual dos Estaduais no calendário do futebol brasileiro. Esse é um tema que merece uma reflexão muito maior e específica. Mas é um fato que a paralisação das competições chega quando restam seis datas por jogar em tais competições.
Se é evidente que, para os clubes grandes, há um desinteresse na competição (o que poderia gerar a defesa de um simples cancelamento dos Estaduais 2020), é preciso entender os interesses econômicos e desportivos dos clubes médios e pequenos.
Um cancelamento do Carioca 2020 o deixaria sem campeão. OK. Mas quem iria se classificar para a Serie D de 2021 (ou 2020/21, no modelo proposto?). Quem iria ser o campeão piauiense, que jogaria a Copa do Brasil? Quem iria jogar a Copa do Nordeste? A Copa Verde? O que fazer com as segundas divisões estaduais, se não se faz o rebaixamento esse ano? Há toda uma pirâmide para atender, não só a dos clubes grandes.
Sugerir que as seis datas restantes dos Estaduais sejam jogadas nas datas atualmente destinadas à FIFA é impraticável (setembro, outubro e novembro). Obrigaria os clubes pequenos a realizar dois jogos a cada 45 dias. Mantendo elenco até novembro, sendo que seu planejamento financeiro previa despesas até maio. É algo impagável.
Podemos colocar as classificações de acordo com a posição atual dos times na competição (o que já seria injusto, pelas discrepâncias de tabela e/ou jogos em casa). Mas distribuir títulos e rebaixamentos é inviável.
Uma solução menos danosa seria, se a temporada do Brasileiro começar no fim de julho, separar 6 datas para a reta final dos Estaduais 2020. Inicio de julho, portanto. Final de junho. Não deixaria de ser um aquecimento para as competições nacionais, e não comprometeria a integridade do calendário proposto.
Assim, no modelo proposto de competições nacionais, os Estaduais teriam seus campeões e qualificados de 2020 normalmente, e retornariam em agosto de 2021, para suas novas edições (esperamos que com menos datas, mas essa ideia foge ao proposto nesse texto).
A saída está longe de ser fácil, porque os clubes pequenos teriam que pagar salários e estrutura por março, abril, maio e junho para jogar algumas vezes em julho. Duvido que existam condições para tal. Será preciso algum tipo de financiamento de emergência, solidariedade para que os pequenos consigam sobreviver.
A outra saída seria terminar os Estaduais com portões fechados assim que possível, para resolver a questão no campo esportivo e reduzir os danos no campo econômico. Aí se jogaria em maio, digamos, após o pico da epidemia. Mas esse é um tema em que não há uma saída clara.
Copas (do Brasil e Libertadores)
Teríamos, pelo calendário normal, a realização de 4 rodadas da Libertadores no primeiro semestre. Paralelamente à tais datas, teríamos também 3 rodadas da Copa do Brasil, ainda pelas fases preliminares. Ou seja, um calendário todo concentrado no segundo semestre precisaria de espaço para acomodar essas 4 datas.
A sugestão realizada acima, começando a temporada em julho, conseguiria encaixar essas 4 datas no período proposto.
Ademais, duas outras datas seriam usadas para os jogos das oitavas de final da Copa do Brasil, que seriam jogadas também no 1º semestre. Ou seja: seriam 6 datas atrasadas a cumprir em julho.
Jogando quarta e domingo, é possível recuperar esses jogos atrasados em julho. A partir daí, o calendário seguiria o que já estava previsto para o 2º semestre. Podendo ter até alguma folga se usadas as datas hoje dedicadas à FIFA.
A Copa do Brasil 2021 seria toda jogada no 1º semestre, para que a 2021/22 seja disputada ao longo de toda a temporada.
Conclusão
Mesmo partindo de um cenário a princípio catastrófico, que é o da suspensão das competições até julho de 2020, ainda é possível termos uma proposta logística que contemple todos os títulos e disputas previstas para a temporada.
A realização de campeonatos de transição em 2020 e 2021 permite que todos os recursos televisivos sejam arrecadados normalmente (fundamental para a saúde dos clubes) e permite que se disputem todos os títulos e qualificações ora em jogo.
No mais, ajusta o calendário brasileiro ao calendário mundial, com ganhos de 15 a 30 dias todos os anos em período útil para os clubes. As férias seriam concedidas no começo de junho, para retorno das atividades em julho e competições a partir de agosto.
Mesmo os Estaduais podem ser disputados ainda esse ano, talvez em alguma situação de emergência em razão das dificuldades econômicas dos clubes. Mas, restando apenas seis datas para seu término, possível imaginarmos uma solução razoável com disputas em junho. É de se observar a questão econômica dos clubes pequenos, que se programam para encerrar as atividades no fim de abril e terão que manter elencos por mais 60 dias, pelo menos.
O calendário não pressupõe nenhuma revolução nos Estaduais, que seria desejável mas não é o tema do estudo. Nem mudança na Libertadores, que também exigiria um consenso que hoje não há. Há uma solução viável, que poderia ser feita apenas no âmbito nacional e que geraria, a curto prazo, uma grande vantagem esportiva e econômica para nosso futebol.