As linhas do mapa: um sonho sem mensagem e o clube de cada um
Esta semana o Flamengo disputa o Mundial de Clubes, no Marrocos. Estou às vésperas de um transe. Tento me distrair enquanto a rocha em que me encontro balança sobre a colina, numa indecisão mineral sobre nosso destino conjunto de pedra e homem. (Quase: estou em casa de quarentena, com Covid-19 mais uma vez.)
Para brincar de deter o tempo, encontrei na introdução do Volume 2 de “Me arrebata”, a HQ de Mauricio Neves e Renato Dalmaso, uma frase do craque Junior:
O Flamengo inteiro, completo, não cabe em lugar nenhum que não seja o peito da gente.
Junior, ex-jogador e comentarista
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Achei essa sentença modelar, e o que penso dela pode ser lido, com adaptações, por qualquer torcedor de verdade, seja qual for a camisa:
O teu clube te atinge de forma única. Tua história com teu clube é única. Teus altos e baixos como torcedor são únicos. Nenhuma tentativa de aprisionar numa generalização o laço singular de cada torcedor com seu clube pode triunfar no fim das contas. Pois o futebol, para muitos de nós, informa o vivido para além do estádio. Colore nossos passos antes de muitas jornadas.
Eu não esqueço do dia em que minha filha mais velha voltou campeã do Maracanã, num jogo em que não pude ir.
Eu lembro de ver um senhor mancando na entrada do Estádio Monumental de Lima. Ia assistido por parentes. Tinha deixado o hospital há pouco e viajado. Ia ver o Flamengo na Final da Libertadores de 2019.
Eu recordo de não recordar o que se passou por quarenta segundos depois do gol do volante Elias contra o Cruzeiro, na partida de volta das quartas-de-final da Copa do Brasil de 2013. Desmaiei em pé e acordei sentado.
E ainda: nas filas para o Maracanã, centenas de vezes ao lado de meu pai e meu irmão. Na escuridão dos túneis de acesso para setores, como se o estádio feito gente se desvelasse de passo em passo para cada um: breu, penumbra, meia-luz, a boca do túnel, e daí o Maracanã entregue aos nossos olhos. Nas cadeiras e no concreto, em conversas de horas antes de o jogo começar. O senso de comunhão quando o que se gritava das bancadas invocava um vento a empurrar jogadores, camisas e bola, feitiço que se sopra — é agora!
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O Flamengo fornece matéria-prima de muitas memórias minhas. Só que o Flamengo me vai além: meu Flamengo é bússola e lastro. Meu Flamengo me localiza — suas glórias e suas desventuras são assim como linhas de meu mapa. Com o meu Flamengo, eu me encontro no tempo e no espaço. O que eu fazia em 1992? O meu Flamengo me lembra então, por associação.
Não sei se posso afirmar que “sou” Flamengo, pois o Flamengo me vem de antes: ele me permite ser. É como o chão. Eu piso, eu me apoio sobre o chão, o chão me salva do abismo. Por acaso eu sou chão? O Flamengo me ocorre então como condição necessária.
Um dos muitos efeitos da Covid-19, conta-se, é o acirrar dos sonhos. Sonhei outro dia com nada em específico, nenhuma mensagem — apenas significado em movimento. Enquanto sonhava, eu sabia o que se passava: uma ideia-força, um conceito que não sei especificar qual, movia-se para cima e para baixo, puxado por um elevador ultra veloz. Cada parada do elevador correspondia a um conjunto diferente de cores e formas, surgidas e desaparecidas em segundos ou menos. O conceito estava escrito, mas eu não conseguia lê-lo. Perto de acordar, eu me disse que já estivera ali.
Pode ter a ver com algum lance de jogo. No contínuo de passado, presente e futuro.
Por David Butter, na newsletter Cinco Cinco