Nos sentimos constituindo um organismo com vida própria, interesses especiais, necessidades peculiares e uma camisa espetacular
Blog Unapitanga | Por Arthur Muhlenberg – Twitter: @Urublog
Espero que ninguém tenha que passar por isso, mas se algum dia uma força maior te obrigar a abrir um dicionário pra saber o significado exato da palavra nação não fique puto se o pai dos burros não fizer sequer uma menção ao Flamengo. Afinal, quem sai aos seus não degenera.
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Lá no livrão você lerá que nações são comunidades estáveis, historicamente constituídas por vontade própria de um agregado de indivíduos, com base num território, numa língua, e com aspirações materiais e espirituais comuns. Só esse papinho de comunidade estável já alija a Nação Rubro-Negra da categoria. O que é de uma obtusidade revoltante.
Até as crianças de colo corredoras sabem que território, língua, cultura ou religião sozinhos não formam o verdadeiro caráter de uma nação. A condição subjetiva para a materialização de uma nação está no vínculo que une aqueles indivíduos lá do parágrafo anterior. É esse vínculo comum que irmana as gentes e provoca em quem está no fechamento a convicção de querer viver de maneira coletiva sob uma única bandeira.
O que forma a nação é, antes de tudo, a consciência da nacionalidade. Essa consciência é o que faz com que nós, que formamos a Nação Rubro-Negra, na maior das humildades, mas sem qualquer estabilidade e sempre de livre e espontânea vontade, nos sintamos constituindo um organismo com vida própria, interesses especiais, necessidades peculiares e uma camisa espetacular.
E não adianta ficar lendo dicionário, gramática ou enciclopédia, esse tipo de conhecimento não se aprende, não se ensina. Pode até permanecer latente durante um tempo, mas é uma consciência que nasce com a pessoa. Ser Flamengo é uma etapa evolutiva, é genético e instintivo. Não é orientação ou opção, não se adquire por contágio. É uma célula entre bilhões que infuencia e controla todo o organismo e coloca o sujeito automaticamente na Nação Rubro-Negra.
Apesar da esnobada dos Aurélios, Michaellis e Houaisses, a existência da Nação Rubro-Negra é um fato, não cabe interpretação. Como via de regra tudo é imenso quando falamos de Flamengo, ao observador menos atento, mais preocupado em listar semelhanças aparentes do que em perceber diferenças ocultas, pode parecer que o conceito de Nação Rubro-Negra esteja diretamente ligado ao tamanho, à pujança, ao PIB, à capilaridade ou à abrangência da torcida do Flamengo. O que é uma armadilha dialética. Uma nação não se constrói com quantitativos, sejam eles cronológicos, territoriais ou demográficos. Isso o sabe-tudo do dicionário não mostra.
Vejam a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, por exemplo. No tempo das vacas gordas quinquenais, em que os chamados soviéticos eram o bicho-papão do Muro de Berlim pra cá, eles faziam e aconteciam, mandavam homens e cachorros ao espaço e batiam de frente com qualquer um. Seu território chegou a ocupar área equivalente a 1/6 do globo terrestre e somavam quase 300 milhões de habitantes. E mesmo com tudo isso a U.R.S.S. nunca foi uma nação.
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Já os Tsohom Djapá, tribo amazônica que perambula pela região de cabeceira dos rios Jutaí, Curuena e Jandiatuba, no vale do rio Javari, não passam de algumas centenas de guerreiros e cunhãs nômades, que vivem da coleta, da pesca e da caça esporádicas, cujo único patrimônio são as suas armas de tecnologia neolítica, seus shorts adidas piratas e seus chinelos de dedo. Mas esse punhado de gentes é suficiente para formar a Nação Tsohom Djapá. Percebem a diferença?
Para que uma nação exista não adianta aparecer no dicionário. É preciso que o nacionalismo puro e incorrupto, livre do comprometedor sentido que o termo adquiriu nos últimos tempos de trevas, surja espontaneamente no coração dos indivíduos. A Nação Rubro-Negra é uma invenção da própria Nação. Um construto mental e emocional que ultrapassou os limites do intelecto para começar a ser também matéria.
A Nação Rubro-Negra não vive apenas dentro das nossas cabeças. A Nação é o resultado da soma do clube com o time, multiplicada pela torcida, fatorada pela nossa rica simbologia, extrapolada pelos semideuses do nosso panteão. E temida até a morte pela arcoirizada safada e mal vestida.
A Nação Rubro-Negra é terra e mar, é carne, e peixe também. É Praia do Flamengo, Rua Paysandu, Gávea, Maracanã, Ilha do Urubu, Cariacica, Estádio Centenário, Monumental de Lima, Aterro do Flamengo. A Nação Rubro-Negra ultrapassou qualquer limite, divisa ou fronteira geográfica e hoje se espalha homogeneamente por todo o planeta.
E a Nação, como o universo e a nossa Sala de Troféus, segue em permanente expansão. Onde quer que dois mulambos se reúnam em nome do Flamengo, seja lá onde for, aquela porção de terra ocupada pelos bem vestidos passa fazer parte do território da Nação.
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A Nação Rubro-Negra também é grito, tensão, perrengue, paciência infinita e tolerância zero, alívio e explosão. E claro, a Nação Rubro-Negra é, essencialmente, o nosso orgulho desmedido e justificado em eterno combate com a nossa humildade natural.
A Nação Rubro-Negra é, em suma, tudo que está, já foi ou será um dia, envolvido pelos nossos sagrados panos vermelhos e pretos. Isto posto, é dever de todo dirigente rubro-negro, do passado, do presente e do futuro, fazer o favor de respeitar essa Nação e seus nacionais. Todos eles. Os ricos e os aparentemente pobres. Os nus e os bem vestidos. Os vivos, os mortos e os que ainda vão nascer.
Feliz 2020 pra Nação.
Mengão Sempre
Arthur Muhlemberg é publicitário e escritor. Escreve suas crônicas flamengas no República Paz & Amor e aqui no MRN. Recentemente lançou dois livros contando as trajetórias das duas grandes conquistas do Fla na temporada 2019: Heptacular e Libertador.