A camisa oito

07/08/2024, 10:18
Homenagem a adílio

No início da minha vida, havia Geraldo Assoviador. Um nome ainda mais bonito: Geraldo Cleofas. Um craque fora de série, meias arriadas, canelas de fora, cabelo Black Power – um craque negro, camisa oito. 

Acho que poucas políticas são tão eficazes no combate ao racismo quanto dar um ídolo negro a uma criança nos primeiros anos de vida. O Flamengo me deu Geraldo Assoviador, que ganhou esse apelido porque ficava assoviando “Your Song”, do Elton John. 

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Mas veio o agosto – sim, sempre agosto – de 1976 e Geraldo se foi. Uma anestesia errada numa operação de amígdalas. 

A minha tristeza de criança foi um sentimento que poucas vezes na minha vida consegui reproduzir. Não digo “repetir”, mas conseguir explicar a alguém. Zico, melhor amigo de Geraldo, ficou devastado. 

Como poderia ter cantado João Nogueira, “troquei de mal com Deus” por ter me levado Geraldo. 

Pouco tempo depois – para uma criança de oito anos, muito tempo – surgia outro camisa oito, negro, meio franzino, mas extraordinário, um craque absurdo. 

E ouvi Jorge Cury, o maior narrador de então, decretar daquele lugar nenhum do Maior do Mundo lotado: “E lá vai o Neguinho Bom de Bola”. Veja: não havia nada depreciativo no “neguinho”. Adílio era negro e era franzino e cativava todos que o viam, inclusive Jorge Cury. O “Neguinho Bom de Bola” era um apelido que ele talvez desse para um filho. 

O sorriso de Adílio, o caminhar dele em campo, os dribles invocados de menino de favela, a história que ele parecia carregar o tempo todo com ele (história de privações e muita luta, conforme Zico destaca numa famosa entrevista de vestiário, os dois ainda novos), não como fardo mas como um coração a mais, nada disso permitia um sentimento hostil. 

E aí por um tempo eu achei que Adílio era um presente de Deus para me conformar da perda do Geraldo. Coisa de criança. A gente sabe que a criança está errada. Mas o sentimento é o mais verdadeiro do mundo.

E dali o meu “presente de Deus” começou a me trazer os títulos: campeão carioca de 1978, depois 1979, um gol inacreditável contra o América no dia em que inauguraram o placar eletrônico do Maracanã, veio o título brasileiro, a Libertadores, o Mundial com um gol dele, pegando um rebote do goleiro Grobbelar, numa falta cobrada por Zico. 

E todo torcedor tem isso: encontra o ídolo ao longo da vida várias vezes. Foram inúmeros encontros, um deles no Maracanã que gerou autógrafo na camisa. 

O último deles foi ano passado, na sede do clube, na Gávea, com meu filho. Ele estava saindo da loja com uma sacola, parou para falar com uns torcedores, e eu disse, “vamos lá, João”.

João não quis ir falar com Adílio, por mera timidez. Em 1976, meu pai quis me apresentar o Zico em Vassouras, e eu fiz a mesma coisa. Zico foi atrás e falou comigo. 

Pois entramos na loja para “fugir” do Adílio e quando saímos, ele, que tinha ouvido o nome do meu filho, disse:

– Ô João, não vai falar comigo não.

O sorriso aos 67 anos era o mesmo dos tempos de Maracanã. Aí João se emocionou e foi lá abraçar. E eu disse ao João:

– O Adílio é, para mim, o que o Gérson é para você, o camisa oito que a gente gosta muito. 

Acho que na verdade era eu criança me declarando ao Adílio. De uma forma meio indireta. Ele entendeu.

Adílio sempre foi de uma humildade extraordinária. Zico, aliás, também é: incansável no atender a seus fãs, não se permite deixar ninguém no vácuo – muito diferente de jogadores de hoje preocupados em entrar logo no carro e ir embora. Saber que não vou mais encontrar com ele ao acaso por aí é uma grande tristeza. Assim como foi muito difícil dar a notícia ao João, que uns meses atrás, vendo vídeos antigos do Neguinho Bom de Bola comigo, falou lá a “besteirinha” dele:

– Papai, o Adílio é melhor que o Pelé!

Ontem, quando dei a notícia, ele chorou igual adulto, e desabafou ao ver o texto do Andrade:

– Andrade e Adílio foram os maiores meios-de-campo da história do futebol!

Nesse momento, não sou eu que vou dizer ao meu filho que ele está errado. Mas é curioso que num Caso Verdade da TV Globo de 1983 tenha sido contada a história de que dois caras abordaram o menino Adílio, então morador da Cruzada, querendo que ele fizesse o papel de Pelé num filme – e foram pedir à mãe dele, interpretada pela incrível Léa Garcia.

Quando recebi a notícia de que Adílio estava internado e que vários campeões do mundo pelo Flamengo estavam indo visita-lo, estremeci. Era um pedaço gigantesco da minha infância que estava indo embora. Era quase a Pangea se dividindo. E eu precisei confortar meu filho. Usei a única saída possível: mostrar as imagens e textos das pessoas que amaram Adílio, mostrei como todos estavam consternados, tristes. 

E disse a ele que quando isso acontece, é porque a vida do ídolo foi correta, justa, bondosa, sorridente. 

Tal e qual um presente de Deus.


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Mundo Rubro Negro
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Notícia e opinião de qualidade sobre o Flamengo desde janeiro de 2015