A Base veio forte. E agora?

03/06/2018, 08:25

A coisa começou em 1979, na famosa reportagem de Geraldo Mainenti para a revista Manchete Esportiva, com o título eternizado na Gávea: “Craque o Flamengo faz em casa”. No subtítulo que, segundo a lenda, teve que ser escrito para completar a diagramação, “Não compra, não vende, não troca”. Sim, é claro que procurei e encontrei as páginas na internet, o que foi uma grande felicidade. Viajei naquele tempo tão distante, eu com 11 anos de idade, comprando a revista na banca, vibrando com as páginas, vendo a cara dos ídolos de perto – diga-se que naquele tempo, 1979, era muito raro a gente ver a cara do jogador. Pasmem. Sim, havia a Placar, a Manchete, mas as poucas transmissões de TV não tinham câmeras no campo, e quem tem mais ou menos a minha idade vai lembrar: intervalo de jogo, o repórter lá no gramado abordava um jogador, e você só ouvia. Se desse sorte, a câmera pegava a entrevista, via-se os dois conversando de longe. Fora isso, os craques de vez em quando iam às mesas redondas.

Mas para nós, crianças, eram bonecos visto de longe e listrados de preto e vermelho. Que a gente via no jornal no dia seguinte, mais de perto, nas fotos do Jornal dos Sports, o cor-de-rosa, e no caderno de esportes d’O Globo.

Assim, a reportagem foi um sucesso absoluto, a maioria dos jogadores em pé, em fila, continua no Panteão Sagrado do Flamengo até hoje – salvo Lima, Cidade e André, nunca soube o que aconteceu com eles. Mas estão lá Zico, Adílio, Leandro, Andrade, Júnior, Júlio César Uri Geller, Rondinelli, Cantarelli e, vá lá, Tita (continua no Panteão, mas andou vacilando no fim da década de 80).

Mas tal e qual defende o psicólogo Clotaire Rapaille em seu fenomenal livro O Código Cultural (Ed. Elsevier), há culturas que são alteradas por fatos até simples – culturas inteiras que incorporam hábitos, vícios, medos e procedimentos. Na maior parte dos casos, a mudança precisa de duas ou três gerações para ser percebida – digamos, por exemplo, que daqui a uns 40 anos possamos apontar no modo de vida dos americanos algo que tenha se originado do atentado do 11 de setembro, por exemplo.

No Flamengo, graças a essa monumental reportagem, foi feita a Inception, a inserção de uma ideia no mindset rubro-negro, segundo o qual sim, Craque o Flamengo faz em Casa, só nós fazemos (o que é dissonância cognitiva nossa), e nós só fazemos craques (outra dissonância). A Base, no Flamengo, sempre mandou desde então. E não é algo a se estranhar tanto – um forno que produz um Zico tem que ser respeitado.

Mas...

Sabemos que desde 1979 as coisas não caminharam sempre em asfalto liso, não navegaram em mar calmo e de enseada, não voaram em céu de brigadeiro. Mesmo quando revelamos grandes jogadores na década de 1990 (dos quais talvez o maior expoente tenha sido Djalminha), pecamos pela...soberba. Sim, dez anos depois, ser “da base” do Flamengo implicava em certa marra. Paulo Nunes, Djalminha, Marquinhos, Marcelinho, Rogério, Zinho, todos grandes jogadores, sem dúvida – mas atingiram um patamar de marra em certo ponto que depois do nosso glorioso pentacampeonato a coisa desandou a tal ponto que se permitiu um tricampeonato do Vasco. Me lembro do apelido “Gaúcho’s Boys”, em homenagem ao saudoso atacante, não mais entre nós. Apelido marrento e que geralmente agrada ao ethos Flamengo, ao torcedor médio – mas a longo prazo causa instabilidades, empáfias e a tal da máscara, termo meio em desuso desde o fim da lei do Passe.

Mas o pior ainda estava para acontecer. Houve gerações e gerações de “revelações” que davam incríveis chabus (termo bem adequado para o mês de junho, repleto de festas com fogos). Qualquer rubro-negro recita pelo menos cinco nomes: Erick Flores, Vinicius Pacheco, Fabiano Oliveira, Rodrigo Arroz, Guilherme Negueba. Você leu essa lista e pensou mais cinco. Todos, reconheçamos, sob a pressão da “Escolinha que revelou Zico”. Todos pressionados pela torcida gigante, imensa, magnética. Todos apavorados com a clássica página, já amarelecida, com o “Craque o Flamengo faz em casa”. Não é fácil, minha gente. Não, não é fácil – ser reforço é mole. Você chega, se não dá certo, arruma outro clube, dá adeus. Tem uns que até conseguem anular suspensão para jogar pela seleção – mas quanto ao Flamengo, um abraço. É muito mais tranquilo vir de fora. Já ser da base do Flamengo sempre implicou em tentar ser um Zico mas arrumar no mínimo uma vaga de Adílio, quando não de Leandro. Se tudo der errado, vai de Peu mesmo (e na boa: se jogasse hoje, Peu iria para a Rússia com a camisa 10 da seleção). É como sempre funcionou. Quando ganhamos a Copinha, mais pressão ainda.

Só que esse ano tem algo diferente acontecendo. Não digo só em futebol, haja vista que Vinícius Jr e Paquetá não estão lá assim 100 por cento em regularidade – apenas no fato de que estão decidindo jogos. Mas há um sentimento de que a Base está não só forte como confiante.

A atuação de Léo Duarte e Thuler contra o Atlético Mineiro, as boas jogadas de Paquetá, o desempenho de Vinícius Jr., as entradas boas de Lincoln e as excelentes participações de Jean Lucas (aposto muito nele) me induzem a pensar que há uma certa solidez nessa turma, uma “marra sob controle”, que seguramente é resultado de bom trabalho de bastidores – psicólogos, técnicos, coordenadores. Claro que tiveram sorte, principalmente os dois da zaga contra o Atlético, mas a sorte só ajuda quem é bom, disso nunca duvidei. Nelson Rodrigues, inclusive, dizia que sem sorte não se consegue nem tomar um Chicabon. Não sei o que será de nós daqui para a frente, mas até agora creio que nós podemos dizer que é uma boa safra. Infelizmente, creio que na volta da Copa (esse intervalo chato que teremos) não haverá mais Vinícius Jr., e há sério risco de não termos mais Paquetá, pois a curiosidade em cima dele cresce exponencialmente.

E isto acontece, basicamente, porque é jogador do Flamengo. Apesar da excelente tirada do Diogo Almeida, editor deste Mundo Rubro-Negro, de que se o nome fosse Lucas Guarujá ele estaria na Copa, creio que a dinâmica do mundo empresarial é outra, não tem esses pruridos do combo Imprensa paulista – CBF – Seleção. No “trade” dos craques, aguentar a pressão do Flamengo significa que você pode ser até mesmo assessor de imprensa da Al-Qaeda ou chefe das relações públicas da Blackwater que tá tudo tranquilo. Você passou no vestibular para a vida adulta no futebol, você foi aprovado no Curso de Operações Especiais do Esporte, que é o Flamengo. Levou tapa na cara, mandaram você pedir para sair, ajoelhou no milho, andou na água gelada cheia de sanguessugas e foi aprovado. Você é o tipo do cara que contratam para colocar a mão no fogo em vídeo para campanha contra hanseníase – já sabem que você tem pele curtida e não se queima.

Com estas qualidades, é claro que ficarão sempre mais de olho nos nossos craques. E não tenhamos ilusões de “manter o craque”. Isso não existe mais no futebol brasileiro. O que existe é “manter boas safras” e “vender depois de usar bem”. Não será o caso do Vinícius Jr, acredito. Mas pode ser o caso do Paquetá – que pode muito bem segurar até dezembro de 2019 antes de seguir para a vaga do Messi no Barcelona ou para a do Cristiano Ronaldo no Real Madrid (embora ache que ele jogue mais recuado que o CR7).

Cabe ao Flamengo voltar a ter essa visão de craque o Flamengo faz em casa, mas craques completos, com personalidade, com poder de decisão, confiança e que tenham uma vida longa no futebol. Que se valorizem a cada jogo. Podem oscilar? Podem, já vimos que Paquetá oscilou, que Vinicius também. Mas aí nós da torcida podemos usar a paciência que tanto treinamos nos últimos 39 anos, desde que Geraldo Mainenti fez história na Gávea. A paciência agora é uma ferramenta para consolidação de toda uma cultura, da parte boa, que precisa permanecer. Não mais marra de cão, não mais jogadores defecando em caldeirões de feijoada (procure saber), não mais jogadores que se jogam cavando pênalti em momentos decisivos, não mais jogadores que depois de 20 minutos de bom futebol invadem a Gávea com o pai a tiracolo exigindo aumento.

Não. O que o Flamengo quer é a Base forte e sim, desta vez, diferente de tudo que há por aí. É possível e acho até que estamos fazendo.
 

Imagem destacada nos posts e nas redes sociais: Gilvan de Souza / Flamengo, Reprodução

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Gustavo de Almeida é jornalista desde 1993, com atuação nas áreas de Política, Cidades, Segurança Pública e Esportes. É formado em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense. Foi editor de Cidade do Jornal do Brasil, onde ganhou os prêmios Ibero-Americano de Imprensa Unicef/Agência EFE (2005) e Prêmio IGE da Fundação Lehmann (2006). Passou pela revista ISTOÉ, pelo jornal esportivo LANCE! e também pelos diários populares O DIA, A Notícia e EXTRA. Trabalhou como assessor de imprensa em campanhas de à Prefeitura do Rio e em duas campanhas para presidente de clubes de futebol. É pós-graduado (MBA) em Marketing e Comunicação Empresarial pela Universidade Veiga de Almeida. Atualmente, escreve livros como ghost-writer e faz consultorias da área de política, além de estar trabalhando em um roteiro de cinema.
 

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